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Gênero e Educação

Atualizado: 14 de jan. de 2019

- Júlio César Suzuki -

Júlio César Suzuki

A Escola é uma parte importante da sociedade, influenciando as dinâmicas sociais e sendo influenciada por elas; tanto que Louis Althusser (1974) já a compreendia, inclusive, como Aparelho Ideológico do Estado (como parte constitutiva da superestrutura), distinta do caráter repressivo que representavam os Aparelhos de Estado.

É a compreensão dos vínculos profundos existentes entre Escola e sociedade que nos impulsiona, como objetivo geral, a discutir a relação entre gênero e Educação no Brasil contemporâneo, a partir de uma perspectiva histórica e sociológica, tomando como referência os avanços legais e as lutas atuais na defesa do direito à diferença.


Educação e sociedade

Como parte da sociedade, a Escola não está alheia aos seus movimentos e representações, como a presença de preconceitos e de conflitos dos mais diversos, sendo o debate sobre os gêneros apenas uma de suas faces. É, nestes termos, de ser parte da sociedade, que a Escola é também um espaço de disputa acerca do que seja o mundo e das relações presentes neste mundo, particularmente aquelas desejadas a ser preservadas por quem domina os locais de decisão.

Durante muito tempo, a ausência do debate sobre gênero na Escola não significou, de forma alguma, a insignificância da importância do seu debate, mas, sim, que os corpos dos sujeitos estavam controlados, num primeiro momento com espaços físicos próprios, segregados: escolas de meninos e escolas de meninas; depois, pela restrição dos encontros, em que os padrões de sociabilidade impunham limites que deveriam ser respeitados. É claro que os muros jamais foram obstáculos intransponíveis, tampouco as regras sociais, razão pela qual a gravidez indesejável entre adolescentes nunca foi algo totalmente incomum na sociedade brasileira dos final do século XIX e durante o transcurso do XX.

Depois de movimentos sociais importantes em defesa da liberdade sexual no mundo e de reconhecimento das diferenças entre os sexos, como o poder de dominação exercido pelos homens sobre as mulheres, o mundo ocidental caminhou, sobretudo após o final dos anos 1960, para o adensamento dos debates sobre o direito ao conhecimento do corpo e ao prazer sexual, bem como ao respeito à identidade sexual, o que culminou para a necessidade e a importância de se reconhecer que não havia mais dois sexos fundamentais como relevantes para discutir as possibilidades de identidades dos sujeitos, mas gêneros diversos que mesclavam as rupturas abruptas anteriormente caracterizadas: homem e mulher.

Os avanços em relação aos debates dos gêneros conduziu para mudanças significativas no âmbito da Escola e da Educação, é o que reconhecem Alex Barreiro e Fernando Henrique Martins (2016, p.96) ao reconhecerem a relação entre a busca pela equidade de gênero e os debates acerca da formação docente, com a inclusão de novos conteúdos curriculares e pedagógicos:

“A busca pela equidade de gênero exige não somente políticas afirmativas, mas também um intenso e progressivo trabalho educacional, seja essa educação no âmbito formal ou informal. Por essas e outras razões, o Brasil vem há algumas décadas debatendo as formações docentes e discentes, propondo novos conteúdos curriculares e pedagógicos que contemplem essas questões e atuem como propulsores no combate às discriminações e às desigualdades de gênero”.

Mas também quando recuperam a importância dos debates com as crianças e adolescente acerca da ruptura com os modelos vigentes de masculinidade e feminilidade construídos a partir da sociedade patriarcal brasileira:

“As discussões emergiram do embate político federal e posteriormente estadual e municipal sobre a necessidade de se trabalhar e discutir com as crianças – desde a pré-escola – as maneiras arbitrárias e impositivas de construção das masculinidades e feminilidades, as quais configuram um território prescritivo e pouco livre para as manifestações de meninos e meninas que queiram experienciar atividades e fazeres outros, não socialmente inscritos pelas convenções socioculturais hegemônicas e colonizadas para um determinado sexo biológico. Dessa forma, a defesa da inserção dos estudos de gênero na educação básica brasileira visa não meramente propiciar a livre manifestação de gênero, mas também desenvolver a longo prazo um trabalho de construção da equidade de direitos, partindo das diferenças das identidades e/ ou dos papéis de gênero. Assim, os valores hierárquicos historicamente herdados do patriarcado e que operam para a permanência das desigualdades entre homens e mulheres e entre as atividades masculinas e femininas seriam, pouco a pouco, destituídos do espaço da educação institucional. E promoveriam, por meio de diferentes dispositivos pedagógicos, formas de compreensão que permitam abranger as profissões, as funções sociais, o direito ao corpo e o exercício pleno da cidadania como parte do processo da subjetividade, e não meramente como marcadores sociais das diferenças determinantes nas escolhas e nas posições (sociais, políticas e econômicas) de homens e mulheres no decorrer de suas vidas” (BARREIRO; MARTINS, 2016, p.69-7).

Com debates novos acerca dos sujeitos sociais de que participavam na construção da sociedade brasileira, são criados parâmetros legais que dão conta da diversidade social, cujos frutos impactam os espaços escolares.


Legislações gerais e específicas na regulação da relação entre Educação e gênero

Transformações importantes no que se refere à relação entre Educação e gênero foram operadas a partir da promulgação da Constituição Federal, conhecida como a Constituição Cidadã, ao garantir a busca pelo fins dos preconceitos (origem, raça, sexo, cor, idade, dentre outras formas) tão marcantes da sociedade brasileira ao indicar ser um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, conforme o Artigo 3º, item IV: “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (BRASIL, 1988, s.p.).

Menos de uma década depois da promulgação da Constituição Federal, em 1996, é aprovada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional brasileira, cujo Artigo 1º assegura o reconhecimento da Educação como algo inerente à prática social, extrapolando os limites da escola: “Art. 1º A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais” (BRASIL, 2014, p. 09).

Sendo que seu Artigo 2º aponta para o sentido de proteção do educando, ao lhe assegurar, como finalidade da família e do Estado, o seu desenvolvimento para o exercício da cidadania, bem como a sua formação para o trabalho: “Art. 2º A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (BRASIL, 2014, p. 09).

O seu Artigo 3º, ainda, em articulação com os objetivos fundamentais instituídos pela Constituição Federal de 1988, defende a igualdade, a liberdade, a diversidade e a tolerância como princípios da Educação e constituintes do espaço da Escola ao tratar dos princípios que devem reger o ensino: “Art. 3º O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; III – pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas; IV – respeito à liberdade e apreço à tolerância” (BRASIL, 2014, p. 09).

O Artigo 22 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional brasileira trata, ainda, do direito à um acervo fundamental de formação, não apenas de conhecimentos, para o exercício da cidadania, da progressão no trabalho e da continuidade da aprendizagem: “Art. 22. A educação básica tem por finalidades desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores” (BRASIL, 2014, p. 17).

O respeito à diferença presente na diversidade social brasileira é, ainda, assegurado no Artigo 32 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional brasileira: “Art. 32. O ensino fundamental obrigatório, com duração de nove anos, gratuito na escola pública, iniciando-se aos seis anos de idade, terá por objetivo a formação básica do cidadão, mediante: [...] IV – o fortalecimento dos vínculos de família, dos laços de solidariedade humana e de tolerância recíproca em que se assenta a vida social” (BRASIL, 2014, p. 22).

Uma década após a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional brasileira, o Conselho Nacional de Educação publica a Resolução nº 1 de 2006, instituindo as diretrizes curriculares nacionais para o curso de licenciatura em Pedagogia, na qual postula, em seu Artigo 5º, item X, a necessidade dos novos pedagogos estarem preparados na identificação e respeito às diversidades ambientais, étnico-raciais e religiosas, bem como de classes sociais, de gênero e de escolhas sexuais, dentre outras que poderiam estar presentes no espaço da Escola nos enfrentamentos cotidianos da prática da Educação: “Art. 5º O egresso do curso de Pedagogia deverá estar apto a: [...] X - demonstrar consciência da diversidade, respeitando as diferenças de natureza ambiental-ecológica, étnico-racial, de gêneros, faixas geracionais, classes sociais, religiões, necessidades especiais, escolhas sexuais, entre outras” (CNE, 2006, p.11).

Em 2009, são reiterados os fundamentos constantes da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional brasileira nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, particularmente no que se refere ao respeito à diferença no espaço da Escola, ao tratar da concepção da proposta pedagógica que deveria incluir a construção de novas formas de sociabilidade e de subjetividade, em que a diversidade social estivesse reconhecida e defendida, particularmente a de gênero:

“Na observância das Diretrizes, a proposta pedagógica das instituições de Educação Infantil deve garantir que elas cumpram plenamente sua função sociopolítica e pedagógica: [...] Construindo novas formas de sociabilidade e de subjetividade comprometidas com a ludicidade, a democracia, a sustentabilidade do planeta e com o rompimento de relações de dominação etária, socioeconômica, étnico-racial, de gênero, regional, linguística e religiosa” (BRASIL, 2010, p.17).

No ano seguinte, em 2010, o Conselho Nacional de Educação publica a Resolução nº 7 reconhecendo a importância de que os componentes curriculares e as áreas de conhecimento articulassem, em seus conteúdos, a inclusão de temas abrangentes contemporâneos, como o de sexualidade e gênero:

“Art. 16 Os componentes curriculares e as áreas de conhecimento devem articular em seus conteúdos, a partir das possibilidades abertas pelos seus referenciais, a abordagem de temas abrangentes e contemporâneos que afetam a vida humana em escala global, regional e local, bem como na esfera individual. Temas como saúde, sexualidade e gênero, vida familiar e social, assim como os direitos das crianças e adolescentes, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), preservação do meio ambiente, nos termos da política nacional de educação ambiental (Lei nº 9.795/99), educação para o consumo, educação fiscal, trabalho, ciência e tecnologia, e diversidade cultural devem permear o desenvolvimento dos conteúdos da base nacional comum e da parte diversificada do currículo” (CNE, 2010, p.34).

Quanto ao Ensino Médio, o Conselho Nacional de Educação publica, em 2012, a Resolução nº 2, ressaltando a importância do projeto político-pedagógico das unidades escolares considerarem o respeito à diversidade com base na promoção dos direitos humanos, a partir de temas relativos aos gêneros, etnias, deficiências, dentre outros:

“Art. 16. O projeto político-pedagógico das unidades escolares que ofertam o Ensino Médio deve considerar: [...] XV - valorização e promoção dos direitos humanos mediante temas relativos a gênero, identidade de gênero, raça e etnia, religião, orientação sexual, pessoas com deficiência, entre outros, bem como práticas que contribuam para a igualdade e para o enfrentamento de todas as formas de preconceito, discriminação e violência sob todas as formas” (CNE, 2012, p.20).

Assim, verificaram-se importantes mudanças legais na relação entre Educação e gênero no Brasil no sentido de assegurar o respeito à diversidade social presente nas escolas brasileiras.


Para não concluir

As transformações operadas nos currículos escolares não foi pequena, permitindo novos patamares na relação entre Educação e gênero, em que a qualidade dos debates possibilitou aprofundar relações essenciais de respeito à diferença com base no reconhecimento da diversidade social que compõem o espaço da Escola.

No entanto, o momento político brasileiro contemporâneo representa uma situação muito particular de retrocesso ao direito de ser dos sujeitos em suas identidades de gênero, criando nomenclaturas e propostas que visam, novamente, controlar os corpos e os pensamentos na Escola, como ocorre em relação à “ideologia de gênero” presente nos debates da “Escola sem partido”. (FRIGOTTO, 2017)

São posturas que recuperam o que há de mais contrário à construção histórica de reconhecimento da diversidade de gênero existente no espaço da Escola, o que conduz para narrativas muito distintas sobre o que seja o mundo da Educação e de seus participantes, não só estudantes, professores, técnicos e pais, mas, sobretudo, a presença abstrata e disforme da família como sujeito com direito à voz e à voto na decisão acerca dos conteúdos a serem trabalhados, bem como a forma com devem ser tratados.

Ao propor um espaço “sem” partido, o que propõem seus correligionários é a defesa de uma perspectiva política que exclui a visão dos violentados da sociedade brasileira, conforme salientam os vários autores da coletânea organizada por Gaudêncio Frigotto (2017), Escola “sem” partido: esfinge que ameaça a Educação e a sociedade, como ocorre no texto de Eveline Algebaile (2017), Escola sem partido: o que é, como age, para que serve.

Este movimento, criado em 2004 (ALGEBAILE, 2017, p.64), desrespeita o sofrimento de sujeitos que, ao não terem sua identidade de gênero, vivem diversas formas de preconceito na sociedade brasileira. Ao serem considerados desviantes, estes sujeitos precisariam ser, então, tratados para alcançarem os padrões de normalidade, não como a média do que se realiza na sociedade, mas do que é considerado saudável e correto, em que pese a forte presença de tendências neopentecostais na defesa da higienização da sociedade brasileira.

Assim, é contundente a presença de discursos e narrativas distintas sobre o que seja a sociedade brasileira, bem como a Educação e as práticas de ensino a serem realizados nos espaços da Escola, o que conduz para o reconhecimento de que, efetivamente, o espaço da Escola é conflitante e está em permanente disputa.


Referências

ALGEBAILE, Eveline. Escola sem partido: o que é, como age, para que serve. In: FRIGOTTO, Gaudêncio (Org.). Escola “sem” partido: esfinge que ameaça a Educação e a sociedade. Rio de Janeiro: LPP/UERJ, 2017. p.63-74.

ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado. Tradução de Joaquim José de Moura Ramos. Portugal: Presença; Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1974.

BARREIRO, Alex; MARTINS, Fernando Henrique. Bases e fundamentos legais para a discussão de gênero e sexualidade em sala de aula. Leitura: Teoria & Prática, Campinas, São Paulo, v.34, n.68, p.93-106, 2016. Disponível: <https://ltp.emnuvens.com.br/ltp/article/viewFile/535/323>. Acesso em: 15 nov.2018.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Câmara dos Deputados Federais, 1988. Disponível em: Disponível: < http://www2.camara.leg.br/legin/fed/consti/1988/constituicao-1988-5-outubro-1988-322142-publicacaooriginal-1-pl.html>. Acesso em: 15 nov.2018.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Diretrizes curriculares nacionais para a educação infantil. Brasília: MEC, SEB, 2010.

BRASIL. LDB: Lei de diretrizes e bases da educação nacional [recurso eletrônico]: Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. 9. ed. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2014. [Lei Darcy Ribeiro (1996)]. Disponível: <http://bibliodigital.unijui.edu.br:8080/xmlui/bitstream/handle/123456789/2335/LDB%209.ed..pdf?sequence=1>. Acesso em: 15 nov.2018.

CNE. Resolução CNE/CP 1/2006 que Institui Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Graduação em Pedagogia, licenciatura. Brasília: Diário Oficial da União, Seção 1, p. 11, 16 de maio de 2006. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/rcp01_06.pdf>. Acesso em: 15 nov.2018.

CNE. Resolução CNE/CEB 7/2010 que Fixa Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental de 9 (nove) anos. Brasília: Diário Oficial da União, Seção 1, p. 34, 15 de dezembro de 2010. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/rceb007_10.pdf>. Acesso em: 15 nov.2018.

CNE. Resolução CNE/CEB 2/2012 que Define Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Brasília: Diário Oficial da União, Seção 1, p. 20, 31 de janeiro de 2012. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=9917-rceb002-12-1&Itemid=30192>. Acesso em: 15 nov.2018.

FRIGOTTO, Gaudêncio (Org.). Escola “sem” partido: esfinge que ameaça a Educação e a sociedade. Rio de Janeiro: LPP/UERJ, 2017.

 

Júlio César Suzuki é Professor Doutor II da Universidade de São Paulo e do Programa de Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em Integração da América Latina (PROLAM/USP).

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