- Guilherme José Purvin de Figueiredo -
A Terra não é o centro do Universo. Ela se move. No ano de 1616, o Colégio Romano, espécie de instituto de pesquisas da Igreja Católica, confirmava as descobertas de Galileu. Na peça "Vida de Galileu", de Bertold Brecht, revoltado, um monge protesta: "A pátria do gênero humano, para eles, não difere de uma estrela errante. O homem, os bichos, as plantas e o reino mineral, tudo eles enfiam na mesma carroça, tocada em círculos pelos céus vazios. Terra e céu, para eles, não existe mais. A Terra, porque é uma estrela do céu, e o céu, porque ele é composto de Terras. Não há mais diferença entre o alto e o baixo, entre o eterno e o perecível". Não demorará muito para que o Vaticano imponha sua censura às teses de Galileu. Para escapar da tortura e da morte, o cientista renega suas teses e ganha uma sobrevida.
Em passagem culminante da peça, o aprendiz Andrea lamenta a retratação do mestre, que acabara de abjurar sua tese. Angustiado, Andrea grita:
“Infeliz a terra que não tem heróis!”.
Galileu, porém, responde mais à frente:
“Não. Infeliz a terra que precisa de heróis”.
Passam-se quatro séculos e estamos no "Novo Mundo", nas terras do sul, repartidas entre Portugal e Espanha. Mais especificamente, no Brasil. O momento por que passa o país assemelha-se ao instante dramático em que, no corredor do hospital, o médico vem comunicar à família que o paciente agoniza e recomenda, caso acreditem em alguma divindade, que façam uma oração. Não é mais possível fazer de conta que tudo está normal nesta que foi, por quase trinta anos, uma democracia constitucional relativamente estável, onde garantias importantíssimas foram conquistadas, tais como maior proteção do meio ambiente, reconhecimento dos direitos das comunidades indígenas, afrodescendentes, LGBT, liberdade de imprensa. De um momento para outro, o Direito Constitucional Brasileiro ruiu. O assassinato de Marielle Franco, ocorrido no breve, ilegítimo e pífio governo Michel Temer, é festejado em palanque eleitoral de candidato vitorioso ao Governo do Estado do Rio de Janeiro. Marcelo Freixo denuncia que está sendo ameaçado de morte. E, no dia 24 de janeiro de 2019, Jean Wyllys, deputado pelo PSOL, toma a decisão de salvar sua própria pele, após ouvir o conselho de Pepe Mujica, ex-presidente do Uruguai: mártires não são heróis.
Não tenhamos, porém, ilusão. Jair Bolsonaro é incomensuravelmente mais violento e menos erudito do que o Papa Paulo V ou o Papa Gregório XV. Mais do que o silêncio, Bolsonaro quer a morte daqueles que defendem a esfericidade do planeta, a evolução das espécies, a ecologia e os direitos de gênero. Diante da notícia de que o jovem gay que, após ouvi-lo homenagear o torturador de Dilma Roussef, não se conteve e cuspiu em seu rosto, está desistindo de seu mandato parlamentar por medo de morrer da mesma forma que Marielle, o Presidente da República envia a mensagem por Twitter: “Grande dia”, seguido de um polegar erguido sinalizando um “positivo”.
Sim. Esta foi a sinalização dada pelo Chefe do Poder Executivo da República Federativa do Brasil a alguém que disse estar com medo de ser assassinado. Esta foi a resposta do representante máximo do Estado Brasileiro a um grito por socorro: “Grande dia”. E 24 de janeiro de 2019 foi apenas o 24º dia de seu mandato presidencial. De fato, um grande dia, um longo dia, um dia interminável para toda a comunidade LGBT do Brasil.
As notícias não são amenas. O médico já avisou à família: "Agora, é deixar para Deus". Tudo é de extrema gravidade. Lembremos que o primeiro gesto de impacto deste novo governo foi a facilitação do porte de armas. Alguém aqui se sente à vontade com a ideia de vir a empunhar uma arma? Você consegue se imaginar matando alguém? Sim, porque armas servem para isso: para matar o próximo. E se você não suportar a ideia de ter uma arma, o que pode passar por sua cabeça, você que em 2013, comemorou com o pessoal da ONG "Sou da Paz" a sanção da Lei 10.826/2003, pelo desarmamento? Jean Wyllys deu ainda um recado: “Preservar a vida ameaçada é também uma estratégia de luta por dias melhores”.
Na peça de Brecht, quando seu aluno Andrea pergunta a seu mestre por que abjurou, por que renegou à Ciência diante da Inquisição. Galileu responde:
GALILEU – Eu abjurei porque tive medo da dor física.
ANDRÉA – Não!
GALILEU – Eles me mostraram os instrumentos.
ANDRÉA – Então não foi um plano.
GALILEU – Não foi.
Pausa.
ANDREA (em voz alta) – A ciência só conhece um mandamento: a contribuição científica.
GALILEU – E essa eu dei.
Não sei se o deputado do PSOL inspirou-se em Brecht, mas sua resposta foi muito parecida com a que deu Galileu para prosseguir em suas pesquisas científicas, sem correr o risco de tortura e morte. Jean Wyllys também deu sua contribuição. Não para a Astronomia, mas para o aperfeiçoamento da Democracia, em particular para a causa LGBT.
Na última cena da peça, Andrea engana o guarda-fronteiras e consegue fugir da Itália, carregando consigo o valioso manuscrito de Galileu com todas as novas descobertas científicas que fizera nos anos de prisão e silêncio.
Aqui, porém, a decisão do deputado passa a divergir da trama na peça de Brecht, pois Jean Wyllys decidiu fundir os papeis de Andrea e de Galileu. O chamado espaço da institucionalidade brasileiro foi tomado por pessoas que cospem na Constituição Federal, negando a inviolabilidade do direito à vida e à segurança, aplaudindo a tortura, cerceando a liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, negando a dimensão ambiental da função social da propriedade, recusando aos presos o respeito à integridade física e moral, concedendo extradição de estrangeiro por crime político ou de opinião, privando da liberdade sem o devido processo legal, considerando pessoas culpadas antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Para quem não sabe, nenhum destes direitos está presente no Manifesto Comunista. Limitei-me a transcrever quase integralmente os incisos do art. 5º da Constituição Federal que estão sendo descumpridos ostensivamente.
Jean Wyllis afirmou que, para o futuro da causa LGBT, precisa estar vivo:
“Eu não quero ser mártir. Eu quero viver. Acho que essa violência política que se instalou no nosso país vai passar. Pode ser que no futuro eu retome isso, mas eu nem penso em retomar porque há tantas maneiras de lutar por essa causa que não passam pelo espaço da institucionalidade”.
Não há Direito Constitucional que resista ao soldado e ao cabo simbólicos que foram colocados na porta de entrada do Supremo Tribunal Federal. Eles não precisam estar ali fisicamente, as palavras podem ser muito mais apavorantes do que a imagem de dois rapazes fardados com armas na mão. Bolsonaro conseguiu o feito de usar uma palavrinha que aprendemos na infância como sendo (àquela época) a maior de nosso léxico. Ele não se contenta com pequenas irregularidades contábeis, como pedaladas fiscais destinadas a evitar a interrupção do fornecimento de auxílio assistência. Não, Jair Bolsonaro optou por governar anticonstitucionalissimamente.
Por isso, Jean Wyllys está certíssimo ao fundir os passos de Andrea e de Galileu. A inquisição medieval brasileira é muito mais medonha do que a do Vaticano no Século XVII, pois é acima de tudo boçal: acredita que a Terra é plana, que os pais de nenês holandeses costumam masturba-los e considera Charles Darwin um marxista. O Vaticano jamais pensaria em proibir a Bíblia Sagrada, mas Bolsonaro colocou a Constituição de 1988 no index dos livros proibidos. Nós não precisamos de heróis, precisamos de vida e de democracia. E a comunidade LGBT talvez venha a ser muito mais eficazmente defendida por Jean Wyllys longe da mira das armas liberadas por Bolsonaro.
Guilherme José Purvin de Figueiredo, Doutor em Direito pela USP, é Advogado e Professor de Direito Ambiental.
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