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REVOLUÇÃO

-Marília Gonçalves-



Ilustração - Marina de Bonis

Chegamos esbaforidas, poucos minutos depois do meio dia, mas não cedo o suficiente. A casa árabe, colada à praça da República, senhora de si nas várias décadas de existência, atrai uma pequena multidão todos os dias, escorada na fama feita com suas delícias besuntadas de tahine, mel e água de flor de laranjeira.


Nosso horário de almoço é curto e já gastamos ao menos quinze minutos entre a Barão de Limeira e o restaurante. A fila de espera inquieta, mas logo vagam dois lugares numa mesinha apertada entre a porta da cozinha e a janela do caixa.


Tudo tem cores fortes o tempo todo, porque nós duas juntas não somamos cinquenta anos e há tanta providência urgente a se tomar para que o mundo mude hoje ou amanhã no máximo.

Enquanto aguardamos algumas esfihas e uma cerveja a conversa vai tomando fôlego. Minha amiga é densa em suas dores e esperanças. Ainda que amanhã tudo amanheça igual e mal nos recordemos do teor completo das discussões, por hoje ao menos, tudo está inadiável.

Às vésperas da primeira eleição direta para presidente do Brasil, após a ditadura militar, trabalhamos num jornal, na área de pesquisas. Minhas habilidades matemáticas e algum senso de organização já foram percebidos e me deslocaram das pesquisas em campo para as que são feitas por telefone, além da tabulação. Todas as semanas, angario dezenas de informações de utilidade discutível para elaborar tabelas informativas aos leitores. Posso ver a cena, preguiçosos em suas poltronas, na manhã de domingo, uma xícara de café na mão e o jornal na outra, conferindo quais são os dez vídeos mais alugados na semana, os filmes no cinema que alcançaram o maior número de estrelas e coisas absolutamente importantes assim. O mundo derretendo e eu ligando para as locadoras pra conferir se Harry &Sally está melhor na fita do que Campo dos Sonhos.


O garçom despeja cerveja em nossos copos e arruma no centro da mesa o prato de porcelana gasto nas beiradas, as esfihas cheirando bem demais.

- Sexta-feira tem debate.


- Você acha que muda alguma coisa? É tudo meio engessado.


- Mas o cara é foda no debate


- Isso lá é verdade


- O importante é a gente ficar atenta, porque tem um movimento, uma coisa delicada, você sente?


- Movimento?


- Sente, como se fosse uma coisa viva, um organismo, um alien.


-Desenvolve o raciocínio.

-Como se cada pequena ação ou sentimento da gente se transformasse em energia e essa energia se concentrasse numa espécie de super nuvem que abriga a energia do mundo todo. E nós..

.

-Nós?

-Sim, nós...


-Acho que me perdi, nós quem?


- Nós, a humanidade, porra!


- Claro, foi o que eu pensei.


Espremi muito limão na esfiha de carne, deliciosa, me sentindo sim, parte da porra da humanidade.


 

Marília Gonçalves - escritora e cozinheira


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1 Comment


Elizabeth Harkot De LaTaille
Elizabeth Harkot De LaTaille
Jun 02, 2019

Energia delicada, Marília e Marina! Parabéns! Lindos conto e ilustração!

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