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Noel Arantes - Professor de democracia

Atualizado: 2 de dez. de 2020

- Guilherme José Purvin de Figueiredo -




A edição n. 3 da Revista PUB - Diálogos Interdisciplinares é dedicada à memória de Noel Arantes, Professor de Literatura e colaborador do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública.

Fomos colegas de magistério superior na Universidade São Francisco. Noel ministrava aulas sobre Análise e Produção de Texto no curso de Psicologia e eu, Direito Ambiental no curso de Ciências Jurídicas. Inteligente, irônico, provocador e progressista, pedia aos alunos que o tratassem apenas por Noel. Era querido por todos os estudantes, que perguntavam sobre o significado da letra “G” nas listas de frequência – G.N.Arantes. Noel prometia que, na última aula do semestre, revelaria o segredo, mas primeiro deveriam refletir sobre alguns artigos jornalísticos e capítulos de livros que ele indicava para a classe atenta – do Mal Estar da Civilização de Freud à histórica edição n. 16 do Ex-. Ex- era um tabloide dos anos 1970 que, em novembro de 1975, estampou em letras garrafais a manchete com o refrão do totalmente ignorado Hino da República – “Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós”. Em seu interior, uma longa matéria investigativa revelava o assassinato de Vladimir Herzog. Foi essa edição do jornal, cuidadosamente protegida em envelope pardo para evitar a deterioração do papel, que Noel mostrou à classe de Psicologia. Os alunos certamente não tinham noção da raridade daquele documento a que Noel dava generoso acesso.

Uma noite, ao fim de nosso expediente na universidade, saímos por volta das 23 horas e fomos para o Sujinho da Rua da Consolação. Na mesa do bar que já conhecia dos tempos do Largo São Francisco, aprendi a admirar esse grande professor, com ideias claras sobre a importância da democracia e da justiça social neste país e profundo conhecedor da obra de Guimarães Rosa e de Vinícius de Moraes.

Eu falava sobre os primeiros congressos do IBAP e contei a ele que o 2º Congresso Brasileiro de Advocacia Pública havia sido realizado em São Lourenço. A conversa então enveredou para as estâncias hidrominerais mineiras. Coincidentemente, Noel havia nascido em Lambari, a menos conhecida das quatro (as outras duas são Caxambu e Cambuquira), em 11 de junho de 1962. E então contou, de forma extremamente bem humorada e pitoresca, a história do luxuoso cassino de Lambari que se erguia imponente às margens de um lago e de seu pai, Geraldo Arantes, um dos croupiers que haviam sido preparados na Europa para estarem à altura do empreendimento de Américo Wernek. O sonho daquela cidade era tornar-se a capital de um novo Estado, abrangendo todo o sul de Minas Gerais e o cassino seria o grande atrativo. No entanto, esse sonho durou apenas uma única noite, 24 de abril de 1911, quando de sua festa de inauguração. Em razão de uma briga política entre os poderosos da economia mineira da época, o cassino foi fechado no dia seguinte e confiscado pelo Estado Brasileiro.

Em 2008, Noel participou de um Ciclo de Formação Política e Cidadania promovido pelo IBAP e que também contou com a participação de Valentim Faccioli (USP) e Ricardo Rossetti (PUC-SP). Nos dias 13 e 20 de junho daquele ano, ministrou duas aulas memoráveis. A primeira, intitulada Humor, insurgência, blasfêmia, suicídio e ateísmo na literatura brasileira do século XX. A seguinte, dando encerramento ao ciclo, O Grande Sertão de Guimarães Rosa.

Em 2013, começamos a idealizar a criação da Revista PUB. Noel, entusiasta do projeto, se dispôs a integrar a equipe na condição de colunista permanente. Trouxe ainda um amigo, Roniwalter Jatobá de Almeida, romancista consagrado que eu havia conhecido nos idos de 1978 quando realizei uma entrevista para o jornal Exidéia, da Faculdade de Direito da USP.

Nossos encontros no Sujinho, sempre devidamente regados a cerveja, renderam a descoberta de que Noel havia estudado a fundo a obra de Campos de Carvalho, autor de A lua vem da Ásia. Era o que precisávamos para estabelecer a relação entre Advocacia Pública e Literatura: Procurador do Estado de São Paulo no Distrito Federal (na época, a cidade do Rio de Janeiro), Campos de Carvalho foi um dos mais importantes escritores dos anos 1960, autor de obras consideradas “malditas”, todas elas repletas de um humor cáustico e perturbador.

Noel nos brindou com o encaminhamento do artigo Campos de Carvalho: Pássaro Inquieto – publicação que inaugurou a Revista PUB. A revista teve uma longa gestação e o lançamento ocorreu somente em 2016. Quando o convidei para a festa de lançamento, na sede do Sindiproesp, Noel contou, em carta datada de 6 de abril daquele ano, que não poderia ir. Em dezembro de 2015 havia sido submetido a uma cirurgia de urgência para retirada de um tumor no intestino:


“No entanto, recuperei-me bem. Agora estou na segunda fase do tratamento, com sessões semanais de quimioterapia. Algumas mais suportáveis, outras bem severas. Nesta semana, por exemplo, fiquei um tanto comprometido. Como Macunaíma, tomei uma surra no terreiro da vovó. Claro, eu gostaria de ir logo para S. Paulo e tomar cervejas deliciosas com você. Infelizmente, é impraticável. Estou no olho do furacão. Ainda assim, acho que vou me recuperar. A derrota, naturalmente, está dentro do cálculo de possibilidades; porém, não estou contando com ela. Creio que daqui alguns meses estarei bom. Volto à ativa e pronto. Com cerveja e tudo. É o que espero. Por agora, abraço-o afetuosamente ainda que à distância. Noel”.


Nessa época, ele estava profundamente indignado com a sórdida campanha da mídia brasileira em prol da desestabilização da democracia no país. Num post scriptum, explicou que desativaria seu e-mail da UOL:


“Não me agrada hospedagem em companhia de golpistas de quinta categoria e ainda pagando por isto. A propósito, mesmo que estivesse recebendo não daria pé”.


Seu magnífico trabalho de pesquisa sobre a obra de Campos de Carvalho seria referido em reportagem de 3 de dezembro de 2016 da Folha de S. Paulo. “É uma obra fora da tradição da prosa brasileira. São livros com temas interditos, com uma sexualidade problemática. É engraçado que os críticos hoje deem um jeito de não falar disso” – declarou na ocasião ao repórter Maurício Meireles. A reportagem informa que seu interesse pela obra de Campos de Carvalho teve início no Curso de Mestrado em 2004. Noel tornou-se amigo de Lígia, a viúva do escritor e advogado público, que lhe confiou acesso aos papeis deixados por ele. De acordo com a reportagem, a amizade começou depois que Noel, em Uberaba, encontrou uma série de 40 poemas e dois textos em prosa dados a um amigo: “Esse amigo se chamava José Sexto Batista. Ele recebeu esses textos na década de 1940. Com a morte dele, sua biblioteca acabou doada para um centro de cultura lá”, contou Noel ao repórter. "Ele tem uma obra fora da tradição da prosa brasileira. Ele é realmente um 'enfant terrible'. São livros com temas interditos, com uma sexualidade problemática. É engraçado que os críticos hoje deem um jeito de não falar disso". Telefonei para cumprimenta-lo pelo trabalho e pela reportagem, mas Noel estava muito irritado com a reportagem e não poupava críticas à Folha de S. Paulo.

Palácio do Cassino do Lago - Lambari. Wikimedia Commons

Em 2017, Noel mais uma vez participou da Revista PUB, agora com o artigo “O centenário de Campos de Carvalho, os sessenta anos de A lua vem da Ásia e uma crítica de Sérgio Milliet”. Conversei por telefone com ele para saber da possibilidade de participar do Congresso do IBAP daquele ano, que iria ocorrer no prédio histórico da Faculdade de Filosofia da USP – o hoje Centro Universitário Maria Antônia, onde receberíamos pelo menos três grandes nomes da Literatura Brasileira – Ignácio de Loyola Brandão, João Silvério Trevisan e Márcio Souza. Noel agradeceu, emocionado, o convite, mas explicou que não estava em condições físicas de ausentar-se de Campinas. Sua preocupação maior, porém, não era com a própria saúde, mas com a saúde da democracia no país.

Profundamente revoltado com o golpe parlamentar de 2016, Noel ainda fazia questão de ressaltar a importância do trabalho realizado pelo IBAP em prol da democracia participativa, da igualdade de gênero, da justiça ambiental e da cidadania plena e prometia encaminhar um artigo para a próxima Revista PUB. Cumpriu o prometido e enviou o artigo “Campos de Carvalho e um testemunho de Jorge Amado”, que deverá abrir a edição da Revista PUB n.3.

Ele nos deixou em 10 de outubro de 2018. Sua esposa, Sônia Midori Takamatsu, integra agora o Conselho Editorial da Revista PUB, publicação que tanto deve a esse grande amigo.

Ah, sim, o "G" era de Geraldo, mas para os amigos ele será sempre o Noel.

 

Guilherme José Purvin de Figueiredo, coordenador geral da APRODAB, é editor da Revista PUB – Diálogos Interdisciplinares.

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