- GUILHERME PURVIN -
A recente notícia sobre a morte de seis brasileiros no Chile, possivelmente vítimas de asfixia por gás num apartamento alugado, é assustadora.
Os noticiários aludem a desastres. Esta palavra, porém, encerra muitas tonalidades. Uma coisa é ser atingido por um raio numa tempestade, ou por um meteorito, ou ainda ser alcançado pela inesperada lava de um vulcão ou pela onda de um tsunami. A palavra "desastre", em suas raízes etimológicas, encerra a ideia de ocorrência nefasta devida aos astros, por isso inevitável pelo ser humano.
O que ocorreu em Santiago do Chile nada tem a ver com os desígnios dos deuses, mas sim com os rumos do mercado hoteleiro na atual fase da economia global.
A falta de investimento na prevenção de acidentes, na manutenção de instalações, na segurança do trabalho, decorre de uma decisão empresarial: quanto podemos ganhar a mais se deixarmos de investir e quem são as potenciais vítimas da previsível ocorrência de um acidente?
O que acontece hoje é que as vítimas eleitas pelo mercado não são mais apenas os trabalhadores, como ocorria tradicionalmente desde a Revolução Industrial, quando crianças e velhos eram tratados como tração animal.
As vítimas no Chile eram turistas de classe média. Vale dizer, pessoas que supostamente não estariam no grande grupo de risco que levou Bismarck a planejar os fundamentos do Direito do Trabalho e da Seguridade Social. Seriam pessoas na mesma situação que você e eu, descritos por Raul Seixas como o dito cidadão respeitável que ganha quatro mil cruzeiros por mês. Ou talvez o dobro do que isso significava em 1973.
A tragédia chilena parece apontar para uma relação direta entre o fornecedor do serviço hoteleira e os consumidores vitimados. O nexo de causalidade, no caso, é elemento sopesado nos cálculos empresariais.
O mercado do turismo, para continuar a ser suportado pela classe média em extinção, adota novos critérios: locação diária de apartamentos mobiliados, oferecidos pelo Booking, AirBnB e similares. Os apartamentos já não são de particulares, são prédios inteiros gerenciados por uma empresa. E a foto da proprietária que aparece no aplicativo, não tenha dúvida, é fake news. Nenhuma recepcionista, nenhuma camareira, apenas um apartamento magicamente limpo. Sim, provavelmente alguém limpou o local, mas não se sabe quem, provavelmente uma empresa terceirizada que contrata trabalhadores em situação juridicamente vulnerável.
As relações entre turista e empresa são impessoais e a geração de empregos é cada vez menor. As chaves, antes entregues pelo proprietário ou um mensageiro, agora ficam num cofre com código numérico. O cliente recebe a senha alguns dias antes da entrada. O empresário não tem rosto: agora é com você. Sem empregados no setor hoteleiro, os custos caem e a classe média pode continuar sonhando que nada mudou. Se algo de ruim acontecer, a culpa é dos astros. Só que não: estamos diante de um flagrante retrocesso civilizatório, retornando aos padrões anteriores aos tempos em que John Kennedy lançou as bases do Direito do Consumidor. O mercado livra-se escandalosamente de todas as amarras que constituíam as bases da democracia capitalista. Não é apenas o Direito Ambiental em retrocesso, não é apenas o Direito do Trabalho ou da Seguridade Social. São todos os interesses difusos e coletivos, instituídos ao longo dos últimos 40 anos, e que serviam de vitrine do Ocidente para provar como o livre mercado possibilita a civilidade e o bem estar.
Guilherme Purvin é escritor
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