- Ibraim Rocha -
O Presidente eleito Jair Bolsonaro, que em discurso público afirmou ter conhecido uma comunidade quilombola cujos membros sequer serviam para procriar, talvez imagine que as comunidades quilombolas vão se extinguir por simples falha reprodutiva. Ou, o que é mais fácil deduzir, pretende que o seu governo não reconheça novas áreas quilombolas.
Entretanto, isto não será possível. Quando o STF julgou a ADI 3239 -DEM vs Quilombos, que questionava a constitucionalidade do Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003, regulamentando o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do ADCT, fixou elementos que consubstanciam o direito subjetivo destas comunidades à terra — direito este exigível do Estado, segundo o voto vencedor da Ministra Rosa Weber, a reger o tema da titulação de comunidades quilombolas.
A decisão do STF reconhece que o art. 68 do ADCT é norma definidora de princípios constitucionais que garantem um direito subjetivo constitucional das comunidades negras nos seguintes termos:
1) O art. 68 do ADCT é norma definidora de direito fundamental de grupo étnico-racial negro, exercitável o direito subjetivo nela assegurado, independente de integração legislativa; é, ademais, limitadora da atuação do legislador infraconstitucional.
2) É obrigação do Estado agir positivamente para alcançar o resultado pretendido pela Constituição e o Decreto nº 4.887/2003 se traduz em efetivo exercício do poder regulamentar da Administração previsto no art. 84, VI da CFRB.
3) Os quilombolas são povos tradicionais cuja contribuição histórica à formação cultural plural do Brasil somente foi reconhecida na Constituição de 1988. Embora não sejam propriamente nativos, como os povos indígenas, eles ostentam traços étnicos-culturais distintivos marcados por especial relacionamento sócio cultural com a terra ocupada.
4) Reconhece a diversidade dos quilombos como formas de fuga da escravidão, resistência e luta por reconhecimento, mas o STF limita as comunidades remanescentes de quilombos como comunidades negras rurais.
5) Reconhece o caráter positivo da auto atribuição que não é arbitrário, sem fundamentação ou viciado, por consistir em método autorizado pela antropologia contemporânea, estampa opção de politica pública legitimada pela Carta da República, que visa à interrupção do processo de negação sistemática da própria identidades aos grupos marginalizados, que é uma injustiça em si mesmo.
6) Declara que os direitos quilombolas estão conectados aos postulados da Convenção nº 169 da OIT referendada pelo Decreto Legislativo nº 143/2002 e ratificada pelo Decreto Governamental nº 5.051/2004, onde o Decreto nº 4.887/2007, atuando como meio de atestar a auto definição e não como indutor.
7) Os critérios do art. 2º, § 3, do Decreto n. 4.887/2007 não deixam ao arbítrio exclusivo das comunidades a definição do território.
8) A constitucionalidade do Decreto n. 4887/2007 e sua aplicação se limita aos casos de comunidades quilombolas que tenham a efetiva posse das terras em 05 de outubro de 1988, dado que somente com o advento da Constituição, se pode ter por existente o art. 68 do ADCT, sendo este o marco temporal definidor de sua incidência, ressalvados os casos de retirada violenta da comunidade.
9) É apropriado o uso do instrumento da desapropriação, sendo modalidade de desapropriação por interesse social, prevista no art. 5, XXIV, c/c a Lei 4.132/1962 e art. 18, alínea “a” da Lei 4.504/1964 (Estatuto da Terra), ficando afastada a desapropriação para fins de reforma agrária, prevista na Lei 8.629/1993, já que o seu objetivo é a preservação do patrimônio cultural brasileiro, tal como previsto nos artigos 215 e 216 da CFRB.
O STF, ao declarar a exigibilidade do art. 68 do ADCT e consequentemente lhe reconhecer e atribui a natureza de um direito humano fundamental, permite a defesa dos direitos subjetivos das comunidades quilombolas relacionados ao direito de acesso a terra, garantindo a sua exigibilidade e proteção judicial, dispensando a necessidade da intervenção do legislador para a sua realização.
Logo, não há dúvida que o Poder Executivo ou o Legislativo Federal, caso queira revogar ou modificar os procedimentos para a titulação das comunidades quilombolas, terá de observar os limites constitucionais estritos, sob pena de violar direito subjetivo com assento direto no texto constitucional. É bom o presidente eleito ja ir se acostumando que vai ter luta na defesa das comunidades quilombolas, pois há uma luz constitucional para a sua proteção.
Ibraim Rocha, doutor em Direito pela UFPA, é Procurador do Estado do Pará.
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