- Marília Gonçalves -
É raiva o que sinto quando ela alcança o banco alto antes de mim. O ultimo banco vazio está abaixo da janela com adesivos que indicam que ali devem ficar os idosos, obesos, deficientes e gestantes. Uns anos e uns quilos a mais, as juntas dos dedos dos pés e o joelho não são mais o mesmo desde o veneno da quimioterapia. Mas não, nem idosa, nem obesa ou deficiente. Meu juízo é que ferve, um pouco afetado pela corrida para alcançar o ônibus e também uma ojeriza que me espinha o humor frente às falhas de gentileza.
Recostada à porta contrária, aquieto o fôlego e observo minha inimiga pontual com discrição suficiente para não ser notada. Mesmo sem ter chegado à idade chancela que permite banco especial e condução gratuita, sou mais velha do que ela. Ao menos vinte anos. Estou a caminho da primeira consulta com uma geriatra. O som da palavra doi e repito quieta para mim mesma, para acostumar.
Uma moça levanta e se apruma para descer gritando ao celular. Eu vou descer, tá entendendo, eu vou descer, ela ameaça. E sai carregando a discussão pela calçada. Sobe o menino que vende salgadinhos e pipocas doces, tudo por um real aqui na minha mão! Sento no banco ainda quente e me dá um pouco de aflição essa proximidade propagada pelo calor dos glúteos. Sentada ao meu lado agora, a usurpadora de bancos de idosos gestantes obesos e deficientes observa um papel numa atenção prenhe de dúvidas.
Aperto os olhos para definir o foco entre os sacolejos do ônibus sanfona. É um holerite. Hoje é o quinto dia útil do mês. Ela olha, dobra e enfia na bolsa. É mais jovem do que eu, tem ao menos trinta, isso, trinta anos a menos.
Há trinta anos meus holerites da Sabesp eram formulários coloridos saídos de uma impressora matricial em duas vias, com carbono. O primeiro pagamento sorvi com tanta gula que o dinheiro sumiu em menos de duas semanas. Escorreu em cervejas no Riviera, na lasanha de calabresa do Piolim, nos ingressos do Cineclube do Bixiga, nos táxis salvadores da madrugada. Depois peguei o ritmo. Aos poucos. É preciso controlar a fome de tudo.
Sem um plano bem definido ou metas de longo prazo, fui quase selvagem no improviso, mas mantive a curiosidade, acima de tudo. Paciente enquanto era possível fazer descobertas, fugi quando os dias viraram sempre o mesmo dia. Sentindo uma coragem de início de batalha, expliquei aos chefes imediatos, os únicos possíveis - não se pode negociar com o patrão Estado - que a vida era muito curta para datilografar efemeridades que iam para o lixo. Juro que acreditei em cada palavra e recebi olhares compassivos.
A moça busca o documento na bolsa e recomeça o exame. São três ou quatro linhas que ela tenta decorar ou entender. Minha indignação esfriou e sou só curiosidade. Guarda de novo o papel, o rapaz que vende tudo por um real desembarca deixando um sonoro fica com Deus. Aproveito o sinal fechado para conferir a numeração e fico a postos para o próximo ponto.
Um trecho de vida precária acrescentou-me alguns anos de esforços antes que eu possa contar com uma mesada do Estado. Nada está garantido, mas estou ali por perto, acho que chego. Tenho amigos que resistiram no plano traçado, moveram-se espertamente no roteiro. Nem assim puderam viver felizes para sempre. Mudaram as regras - não confie, eles mudam. Sem aviso sem justiça sem pudor sem respeito sem vergonha sem consideração sem um puto pingo de empatia.
Eu estou ali perto, acho que chego, mas se não, talvez abra caminho na marra. Não serei a única, somos uma matilha cada vez maior.
Minha ex-inimiga está conferindo pela terceira vez a listagem dos brutos e líquidos com olhos tão indignados que me invade um perdão universal. O tônus dessa pele jovem não tem a promessa de futuro que já hidratou as minhas bochechas. Ela precisa do banco. Precisa sentar-se um momento. Antes que saiamos por aí distribuindo pontapés.
Marília Gonçalves é poeta, cozinheira e cantora.
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