O “Comitê Gestor do IBS” – uma “entidade” em busca de enquadramento
- Revista Pub
- 1 de abr.
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-Ricardo Antonio Lucas Camargo-
Um dos princípios anunciados em relação à reforma tributária foi o da “simplicidade”, o que, desde logo, gera uma frustração, pela criação de um imposto com mais de um credor: o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) é exigível pelos Estados e pelos Municípios.
Ante a complexidade da nova exação, houve a precisão do comitê gestor que iria então definir como é que se estabeleceria a cobrança, como que se estabeleceria, enfim, toda a possibilidade de operacionalizar o ingresso dos recursos correspondentes.
Este novo imposto, deferido a mais de um ente da federação, não só sob o ponto de vista material se mostra de altíssima complexidade, mas também sob o ponto de vista formal. Muitas dúvidas emergiriam acerca de quando emergiria a competência tributária do Estado ou do Município, ou do Distrito Federal. Tendo em vista essas complicações, o artigo 156-B da Constituição Federal cria o Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços, que recebe o batismo de “entidade pública” pelo seu § 1º.
E qual seria a natureza jurídica deste comitê gestor? O Poder Constituinte derivado fala em “entidade autônoma”. Que tipo de entidade? É uma autarquia? É uma fundação? E mais, se é uma entidade personalizada, deverá ser uma entidade com personalidade de direito público, pois de difícil aceitação onde se concentra o exercício da força no Estado conferir poderes coativos para uma entidade de direito privado [AGUILLAR, 2009, p. 232], como é o caso de uma empresa pública ou sociedade de economia mista [SOUZA, 2002, p. 449]. Poderes de exercer a força: vai ter que ser de direito público.

Em se tratando de “entidade” – resta saber se autarquia, se fundação pública -, somente poderá ser criado por lei de iniciativa exclusiva do Chefe do Poder Executivo, nos termos dos artigos 37, XIX, e 61, § 1º, II, “e”, da Constituição Federal [GRAU, 2017, p. 275], exigência de que não escapa nem mesmo a lei complementar, porque esta somente se diferencia das outras em razão do quórum exigido para a aprovar, e é de se notar que o Supremo Tribunal Federal somente arredou esta exigência em relação ao Banco Central em razão das peculiaridades deste, que não são pertinentes a este Comitê. se é uma entidade pública já sabemos de quem vai ser a iniciativa para a apresentação da proposta de lei complementar: é do executivo. Por que é do Executivo? Por causa do que dispõe o inciso XIX do artigo 37 da Constituição combinado com o seu artigo 61, § 1º, inciso II, letra “e”. A cláusula de reserva de iniciativa, independente de se tratar de lei complementar ou lei comum, não se arreda neste caso. Independentemente de concordar com a posição que o Supremo adotou em relação ao Banco Central, foi só ali que ele afastou a cláusula de reserva de iniciativa em fase de atribuições de entidades da administração indireta. Então, nesse caso a iniciativa é exclusiva do chefe do poder executivo, segundo a jurisprudência remansosa a respeito da matéria. Entre outras, porque faz menção a vários outros acórdãos, a ADI 2302 do Rio Grande do Sul relatada na limitar pelo ministro José Neri da Silveira e no mérito pelo seu sucessor Gilmar Ferreira Mendes. E neste caso, ter-se-á de identificar sede, criar remunerações para os cargos de direção – o que já traz uma preocupação, considerando quem são os integrantes do aludido Comitê, já ocupantes, por si mesmos, de altos cargos nas administrações estaduais e municipais -, quadro de pessoal para operacionalizar atividades-meio.
Toda entidade, mesmo numa virtualização plena das relações, precisa de uma base física em que se vão assentar os seus equipamentos e o pessoal que irá ali atuar, até mesmo para se saber das condições materiais para o exercício concreto de suas funções [ESPÍNOLA & ESPÍNOLA FILHO, 1939, p. 510].
Todos que irão participar do comando de qualquer entidade da administração indireta, pelo grau de responsabilidade consistente na gestão mesmo do patrimônio dessa mesma entidade vão precisar receber gratificação, e esta terá de ser fixada pelo ente que a criar, no caso, a União Federal, já que abrange mais de um Estado. O curioso é que as altas autoridades que vão compor o órgão da “entidade” muitas vezes já têm as gratificações correspondentes as suas funções, secretários da fazenda, por exemplo.
Não se pode deixar de pensar nas questões de pessoal, porque não se operacionaliza absolutamente nada se não houver uma mão humana para fazer, mesmo com inteligência artificial: se não houver alguém que crie os comandos, simplesmente nada anda. Mesmo que se parta para a terceirização, sempre haverá mister alguém para realizar os respectivos contratos, o que mostra a complexidade da escolha da “entidade pública”, por mais especial que seja.
Há previsão de o Comitê ser financiado por percentual do produto da arrecadação do imposto destinado a cada ente federativo. A própria questão da fiscalização e da cobrança do imposto, a ser realizada tanto no âmbito extrajudicial como judicial, pelas representações respectivas neste âmbito, passa a assumir a necessidade de delegações ou compartilhamento de competências, o que se torna particularmente complexo em se tratando de uma exação que vai substituir aquela que traduzia a principal fonte de recursos para os Estados Membros e Distrito Federal e uma fonte substanciosa de recursos para os Municípios.
A composição do Comitê, outrossim, para além do que consta no § 3º do artigo 156-B da Constituição Federal, tem sido objeto de disputas acerca da proporção da representatividade dos servidores fazendários e da advocacia pública. Porque na própria composição do comitê gestor, dos detalhamentos, nós estamos vendo uma grande disputa entre as entidades representativas dos servidores fazendários e da advocacia de estado. Saber qual vai ser a proporção de cada uma delas ali nesse comitê. E há um dado bastante curioso porque nós podemos lembrar que normalmente nos Estados e Municípios a inscrição da dívida ativa cabe à Secretária da Fazenda. No âmbito da Receita Federal, é a própria PGFN que faz a inscrição da dívida ativa. Independentemente de qual seja o melhor, chama-se a atenção para o fato que existe diversidades de regime.
E por outro lado, surgem vários outros temas aí que envolvem, por exemplo, a cobrança judicial. Atualmente não precisam os Conselhos Superiores das Procuradorias Gerais dos Estados designar especialmente tais ou quais procuradores para a cobrança do ICMS: esta integra as atribuições ordinárias destes. Entretanto, para o IBS a situação vai mudar. A atribuição ordinária vai acabar ficando no campo do IPVA, no campo do imposto de transmissão “causa mortis” e doações. Porque para o IBS, como há um interesse maior, vai haver a necessidade de designar procuradores especialmente para isso. Tudo isto mostra uma mudança significativa na própria rotina da advocacia de estado no que tange a cobrança desse imposto, determinando um grande exercício de cooperação e integração entre instituições, tanto fazendárias quanto advocatícias no âmbito público, ligadas às mais variadas entidades federadas interessadas na arrecadação [NERY, 2024, p. 522-3].
Há uma das questões que foram postas para o comitê é buscar compatibilizar sua atuação com a principal, a mais importante mesmo, de todas as garantias do contribuinte, que é o princípio da legalidade tributária [BRITO, 2000, p. 52; BALEEIRO, 1976, p. 368; DERZI, 2007, p. 314; FARIA, 2013, p. 628; MALERBI, 1984, p. 77; MARINS, 2002, p. 65; MOISÉS, 2019, p. 62-3; RIBEIRO, 2003, p. 26-7; ATALIBA, 1978, p. 75; KOURY, 2021, p. 187; TORRES, 2013, p. 106-7]. Porque a rigor quem tem que estabelecer a alíquota são os estados, para o IBS, isto está escrito ali no texto. Mas assim como o estabelecimento das alíquotas, a concessão dos benefícios depende de provimento legislativo, nos termos do § 6º do artigo 150 da Constituição. Porque uma coisa é o comitê condicionar, como o CONFAZ condiciona a concessão de benefícios. Mas ele não concede benefícios, ele simplesmente condiciona [COELHO, 1990, p. 241; BEVILACQUA, 2013, p. 75; CARRAZZA, 2009, p. 519; HENRIQUES, 2011, p. 89], ao contrário do que ocorria no regime castrense [BORGES, 1975, p. 173; MORAES, 1978, p. 331]. Para conceder o benefício, precisa de lei específica. Ele não pode conceder o benefício.
A Lei Complementar 214, de 2025, dos artigos 480 a 48, traz a disciplina do Comitê Gestor, caracterizando-o como “entidade” sem qualquer vinculação, tutela ou subordinação hierárquica com qualquer tipo de Administração Pública, habilitando-o à edição de atos normativos, submetendo-o às normas gerais sobre licitação, disciplinando a composição de seu Conselho Superior, bem como a forma de investidura de seus membros, a sua instalação, a forma de financiamento inicial. Várias atribuições do Comitê Gestor encontram-se espalhadas pelo texto da Lei Complementar, cujo comentário em minúcia não se torna possível por motivos de espaço.
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RICARDO ANTONIO LUCAS CAMARGO é Professor nos cursos de Graduação e Pós Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Professor Visitante da Università degli Studi di Firenze – Integrante do Centro de Pesquisa JusGov, junto à Faculdade de Direito da Universidade do Minho, Braga, Portugal – ex-Presidente do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública – IBAP.
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