Relações federativas e gestão de receitas na Emenda Constitucional n. 132, de 2023
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-Ricardo Antonio Lucas Camargo-
Não é somente na administração dos recursos próprios das entidades federadas
que se põe a discussão da respectiva autonomia financeira como elemento do
denominado “equilíbrio federativo”.
O financiamento da materialização das políticas públicas, dentre elas, a política
econômica, não se dá, tão-somente, por meio da tributação, mas também a partir de
outras fontes de receita, dentre elas, os repasses provenientes de fundos com destinação específica.
As características inerentes aos fundos, como massa de recursos segregada para
permitir as aplicações no desenvolvimento das finalidades que justificam a sua
instituição [CHAVES, 1979:223], comparecem como um elemento que aponta para a
atribuição, pela Emenda Constitucional n. 132, de 2023, ao Estado de um papel ativo,
de promotor do desenvolvimento econômico, para além das atividades a serem
materializadas pelo processo normal de execução orçamentária.

Um dos temas que mais renderam ensejo a discussões dos entes federados
menores perante os maiores – a retenção de recursos do fundo de participação para compelir à satisfação de dívidas – vem a comparecer no artigo 159-A, § 1º, da Constituição Federal, ao interditar expressamente a retenção dos recursos inerentes ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional, que devem ser entregues pela União aos Estados Membros, ao Distrito Federal e aos Municípios para financiar a realização de estudos, projetos e obras de infraestrutura, fomento a atividades produtivas com alto potencial de geração de emprego e renda, promoção de ações voltadas ao desenvolvimento científico e tecnológico e à inovação, proibição que tem como fundamento precisamente porque o próprio pagamento das dívidas não nulifica aaparente obviedade de que o ente federado “não pode eximir-se às demandas da população, sob pena de comprometer a sua natureza democrática e as suas funções intransferíveis, chegando à negação de sua existência no federalismo” [SOUZA,2015:32].
Resta saber se esta interdição não será, como ocorreu com o caput do artigo
160 da Constituição Federal, anulada por desdobramentos do próprio dispositivo, já que
o Supremo Tribunal Federal entendeu que o condicionamento da entrega dos recursos
do fundo de participação poderia traduzir-se, também, como desconto do montante a ser repassado, quando se tratasse do pagamento de parcelas em atraso da dívida dos entes menores.
A utilização dos recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional está
posta no parágrafo único do artigo 159 – reabilitação e renovação urbana para fins de
“ preservação patrimonial, a qualificação de espaços públicos, a recuperação de áreas
habitacionais, a restauração de imóveis e melhorias na infraestrutura urbana e de
mobilidade” -, nos §§ 1º a 4º do artigo 405 – composição das parcelas a serem
destinadas a ele – e no artigo 535 da Lei Complementar 214, de 2025.
O fato de terem de dividir, compulsoriamente, parte da receita dos respectivos
impostos com os entes federados menores tem conduzido os entes maiores a buscarem outras fontes.
Hoje em dia a União prefere apostar muito mais na instituição de contribuições
do que propriamente de impostos, embora em relação a estes ela tenha o poder residual de criação. Porque quando ela cria novos impostos, parte da respectiva entrada deve ir para o Fundo de Participação dos Estados, Municípios e Distrito Federal, ao passo que os recursos provenientes de contribuição ficam com ela, União, mesmo que tenham a finalidade vinculada.
Frequentemente, a opção pela contribuição atende muito mais às necessidades de
caixa da União do que propriamente o imposto, sem contar com o expediente da
Desvinculação da Receita da União, reiterado por várias emendas constitucionais
[TORRES, 2013, p. 371], cuja antipatia foi demonstrada amplamente por vários
momentos, mas não se conseguiu identificar qualquer das cláusulas pétreas que ela
pudesse, eventualmente, ter malferido.
Vale recordar que já se ensaiou um entendimento no sentido de que, com a DRU,
foi criado, em prol da União, um instrumento de que os demais entes federados não
disporiam para terem, ao alcance da mão, recursos que compensariam as carências de
recursos para o atendimento dos encargos que a Constituição lhes deitou sobre os
ombros [ABRAHAM, 2009, p. 126-7], mas constatações desta natureza não são consideradas aptas a abolir a forma federativa de Estado, para o Supremo Tribunal
Federal.
Note-se que o § 1º do artigo 6º da Emenda 132, de 2024, dispõe que até as
vinculações postas para o ICMS e o ISSQN no âmbito das legislações estaduais e
municipais passam a ser estendidas ao IBS, e o § 4º do artigo 167 da Constituição passa
a admitir a vinculação de percentual da receita do IBS para fins de pagamento ou
garantia da dívida com a União Federal, ressalvando a proibição geral da vinculação da
receita de impostos estabelecida pelo inciso IV do mesmo artigo 167.
O artigo 82 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, depois de
prescrever aos Estados e Municípios o dever de instituírem Fundos de Combate à
Pobreza, autoriza a vinculação de percentual da receita do IBS, afastando tal percentual
do Fundo de Participação dos Municípios, expressamente, embora deva ser preservado
o percentual de 25% reservado a estes, incidente sobre o montante a ser destinado aos
Estados [BINS, 2024, p. 559-560].
Recorde-se que, até 2033, o IBS irá conviver com o ICMS e o ISSQN, e
iniciando-se a respectiva arrecadação em 2026, diz o artigo 125 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias que o respectivo produto somente poderá ser destinado ao
financiamento do Comitê Gestor, examinado no tópico próprio, e ao Fundo de
Compensação de Benefícios Fiscais ou Financeiro-Fiscais do ICMS, arredadas as
demais vinculações constitucionais.
Ou seja, ao ano de 2026 não se aplica ao IBS a vinculação de receitas nas
hipóteses constitucionalmente admitidas, uma vez que a totalidade do produto da
arrecadação nesse exercício se destina a viabilizar o funcionamento da “entidade
pública” batizada como “Comitê Gestor” e à reposição das perdas financeiras
representadas pelos benefícios relacionados ao ICMS, o que se reitera no artigo 343 da
Lei Complementar 214.
Os artigos 384 a 389 da mesma Lei Complementar 214 versam a compensação,
com recursos do Fundo de Compensação de Benefícios Fiscais ou Financeiro-Fiscais do
ICMS, para os que, titulares de benefícios onerosos do ICMS, venham a ser afetados
pela redução do nível desses benefícios.
Bem se vê, pela simples indicação dos elementos contidos no texto, que a
Emenda Constitucional n. 132, de 2023, e a Lei Complementar n. 214, de 2025,
estiveram bem longe de traduzir um retorno à noção utópica das “finanças neutras”
pretendida pelos primeiros teóricos da economia de mercado, quer quanto às relações
federativas, quer quanto ao próprio financiamento das políticas públicas.
Referências bibliográficas
ABRAHAM, Marcus. As emendas constitucionais tributárias. São Paulo: Quartier Latin, 2009.
BINS, Luiz Antonio. Da repartição das receitas do IBS aos Municípios. In: SILVEIRA, Paulo
Caliendo, CASTELLO, Melissa Guimarães & KOCH, Mariana Porto [org.]. O IBS e a CBS na Constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2024, pp. 551-568.
CHAVES, Antônio. Fundos. In: FRANÇA, Rubens Limongi [org.]. Enciclopédia Saraiva de
Direito. São Paulo: Saraiva, 1979, v. 39, pp. 220-4.
SOUZA, Washington Peluso Albino de. Parecer. In: SOUZA, Washington Peluso Albino de;
TORELLY, Paulo Peretti & CAMARGO, Ricardo Antonio Lucas. Constituição Econômica e pacto federativo. Porto Alegre: Nuria Fabris, 2015, pp. 11-55.
TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 19ª e. Rio de Janeiro:
Renovar, 2013.
Professor nos cursos de Graduação e Pós Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Professor Visitante da Università degli Studi di Firenze – Integrante do Centro de Pesquisa JusGov, junto à Faculdade de Direito da Universidade do Minho, Braga, Portugal – ex-Presidente do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública – IBAP – membro do Instituto dos Advogados Brasileiros e do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul. Escreve todo o dia 01 do mês.
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