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Regimes diferenciados do IBS e igualdade tributária

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-Ricardo Antonio Lucas Camargo-


A busca do tratamento igualitário perante o Fisco, viabilizando uma previsibilidade maior para o resultado do cálculo econômico, em linha de princípio, afastaria a adoção de regimes diferenciados para os sujeitos passivos.


A isonomia, nesses casos, viria a conferir eficácia à aspiração de neutralidade para a tributação sobre o consumo, dando-se a bens e serviços de mesma natureza o mesmo tratamento, não se distinguindo entre bens nacionais e importados [CASTELLO, 2021, p. 25; SCHOUERI, 2013, p. 354-5].


Pretende-se ofertar ao novo imposto sobre bens e serviços um regime uniforme (Constituição Federal, artigo 156-A, § 1º, IV), a despeito de ser cobrado por entidades autônomas entre si, a saber, os Estados membros, o Distrito Federal e os Municípios, reservada, ainda, aos Estados, a fixação da alíquota de acordo com lei de sua competência (Constituição Federal, artigo 156-A, § 1º, V). 




Imagem - Pixabay
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Como o espaço para publicação é exíguo para os fins de realizar os comentários detalhados que a matéria exigiria, basta, aqui, dizer que a Lei Complementar 214, de 2025, no seu Título IV, disciplina os regimes diferenciados, nos artigos 126, 127(redução em trinta por cento das alíquotas em relação aos serviços prestados por profissionais liberais nele elencados, sujeitos à obrigatoriedade de registro em entidades de fiscalização), 128 a 142 (redução em sessenta por cento das alíquotas em relação às atividades econômicas de interesse público elencadas neles), 143 ao 156 (redução a zero da alíquota referente ao fornecimento de bens e serviços ali elencados a pessoas em situação considerada, pela lei, particularmente preocupante ou desenvolvimento de atividade de altíssima relevância), 157 (“isenção” – rectius, não incidência – dos serviços de transporte coletivo em regime de autorização, permissão e concessão), 158 a 163 (redução em sessenta por cento das alíquotas em relação a atividades voltadas à reabilitação urbana de zonas históricas e áreas críticas de recuperação e reconversão urbanísticas dos Municípios e do Distrito Federal), 164 a 167 (definição dos critérios para o produtor rural ser ou não contribuinte do IBS), 168 (apropriação  de crédito presumido dos tributos incidentes sobre a aquisição de produtos ou serviços do produtor rural não contribuinte do IBS),  169 (apropriação de crédito presumido de aquisição de serviços de transportador autônomo não contribuinte do IBS), 170 (apropriação de créditos presumidos referentes à aquisição de resíduos sólidos para destinação ambientalmente sustentável) e 171 (apropriação de créditos presumidos de revenda de bens móveis adquiridos a pessoa não contribuinte do IBS).


O enquadramento em regimes diferenciados, autorizado pelo § 6º do artigo 156-A da Constituição Federal e disciplinado nos artigos 126 a 171 da Lei Complementar 214, de 2025, exigirá a rigorosa reconstituição do fato que o autoriza, precisamente para se evitar discriminações injustificadas entre os agentes econômicos [ÁVILA, 2009, p. 70-1; COSTA, 2014, p. 92-3; DENARI, 1998, p. 60], até mesmo em nome da própria previsibilidade dos ônus [NOGUEIRA, 1998, p. 271].


Embora aparentemente óbvio, cabe enfatizar que os ônus inerentes à vida social – de que o econômico é apenas um aspecto – sobre os indivíduos nem sempre produzem os impactos sobre todos na mesma proporção: longe da situação tida como ideal pelos cultores do “Estado Mínimo”, em que a repartição dos resultados da economia decorreria da “seleção dos mais capazes pelas oscilações naturais da oferta e da procura”, já ao início da competição, não raro, existirá um desequilíbrio exigindo uma atuação corretiva exterior aos ofertantes e procurantes.


Registre-se posição no sentido de que toda e qualquer discriminação não se justificaria, porque seriam as desigualdades criadas pelo “artificialismo” do Direito, em oposição à seleção naturalmente operada pela concorrência [FERRAZ, 2010, p. 143], quando, a bem de ver, nem todos os indivíduos ingressam no mercado em igualdade de condições [SOUZA, 2002, p. 127; GRAU, 2017, p. 204; CARRAZZA, 2009, p. 300; ZILVETTI, 2004, p. 317-9; SCHOUERI, 2013, p. 371-3; KOURY, 2021, p. 207], e nem todos os objetos voltados à satisfação de necessidades podem ser ofertados em condições de concorrência, e tanto isto é verdade que uma das hipóteses tradicionalíssimas em que a legislação brasileira declara inexigível a licitação é que não haja uma multiplicidade de agentes capazes de ofertar, em igualdade de condições, à administração pública, os bens e serviços a serem objeto de contratação.


A par de não se admitirem fatores de discriminação como os denunciados no inciso VIII do artigo 5º da Constituição brasileira de 1988 [TORRES, 2013, p. 83], as disparidades materiais que distinguem os diferentes grupos que compõem a sociedade brasileira podem perfeitamente, para o fim de recompor situações de desequilíbrio, ser tomadas em consideração, inclusive sob o ponto de vista tributário [DERZI, 2007, p. 134-5]. 


Não é raro que, em face de não se verificarem os pressupostos do enquadramento, empresas sejam consideradas sujeitas ao regime tributário geral e judicializem a matéria, sustentando terem sido sancionadas, quando, em realidade, não se lhes está impondo um desconforto porque não procederam adequadamente, segundo a legislação, mas se lhes está negando uma posição privilegiada em razão de não terem demonstrado preencherem os requisitos para lhes ser alcançado o dito privilégio.

 

E por outra banda muitas vezes o tratamento diferenciado vai justificar-se para viabilizar uma atuação no mercado entre agentes que estão em situação totalmente desigual à partida, e vale destacar que, quando se fala em tratamento privilegiado, fala-se em um tratamento necessariamente diferente do tratamento normal, geral [MACHADO, 1984, p. 23; ESPÍNOLA & ESPÍNOLA FILHO, 1939, p. 255]. 


E os requisitos para o desenvolvimento da atividade em tratamento privilegiado têm que ser rigorosamente apurados justamente porque se trata de uma situação diferente daquela que se considera a normal, a que se enquadra no que mais frequentemente acontece. 


Justamente porque o normal se presume, o que sai deste, demanda prova, segundo cânone hermenêutico sobejamente conhecido, e que preside o emprego das denominadas “presunções de homem” a que se reportava o artigo 335 do Código de Processo Civil de 1973 e se reporta, hoje, o artigo 375 do Código de Processo Civil de 2015 [CANTO, 1984, p. 10; MAXIMILIANO, 2002, p. 212; ALVIM NETO, ASSIS & ALVIM, 2013, p. 739-740; SANTOS, 1983, p. 403; AGUIAR, 1977, p. 106; DINAMARCO, 2009, p. 122; ZAVASCKI, 2000, p. 62; CARNEIRO, 1998, p. 23; GENTILE, 1960, p. 404-5; CARNELUTTI, 1982, p. 65-6; THEODORO JR., 2016, p. 464].


Então quando alguém não é enquadrado no tratamento privilegiado ele não está sofrendo uma sanção; ele simplesmente está deixando de fruir de uma situação mais benéfica do que a da maioria, seja em termos de “obrigações principais”, por exemplo, por alíquotas reduzidas em face de características do produto que seja objeto da operação, seja em termos de “obrigações acessórias”. 


Fosse isso mais evidente, talvez houvesse até menos discussões judiciais em torno disso, seja da parte de contribuintes que acham que são violentados pelo fato de não serem enquadrados em caráter privilegiado, seja evidentemente da parte de algum agente fazendário que ache que cassar o regime privilegiado é uma forma de sancionar o contribuinte. 


Sobre esse particular, muitas vezes há algumas incompreensões que precisam ser melhor aclaradas: o desconforto de o devedor cair numa situação menos benéfica somente se vai caracterizar como uma sanção aflitiva se a situação menos benéfica for mais gravosa do que a prevista para a generalidade dos devedores.


Já a supressão arbitrária da situação privilegiada não pode ser considerada como “sanção aflitiva”, mas sim como efetiva lesão a direito subjetivo: “sanção” dessa espécie somente haverá quando corresponder à infração a um dever estabelecido em norma primária. 


No contexto de um Estado de Direito, o parâmetro objetivo da juridicidade se põe justamente para que todo aquele que se encontre investido numa condição de autoridade deixe de se valer dessa condição enquanto um meio para dar vazão à realização concreta de seus afetos, seja favorecendo os mais próximos de si, seja causando sofrimento aos desafetos ou aos indiferentes.


É bem verdade que cada qual, quando se vê diante de situação em que lhe é subtraída uma posição de vantagem, sente como se lhe tivessem amputado um membro, mas é sempre necessário realizar a indagação acerca da defensabilidade jurídica, primeiro, do alcançar da vantagem ao sujeito passivo, segundo, das condições da permanência dessa vantagem, terceiro, da cessação da vantagem.


De qualquer modo, por menos simpática que possa ser a existência de regimes jurídicos diferenciados, em particular no campo tributário, nem sempre a possibilidade de se adotarem privilégios vai mostrar-se, como se costumava dizer daqueles que não se justificavam, “odiosa”: será, antes, forma de tratar desigualmente os desiguais, desde que a medida da respectiva desigualdade tenha como ser demonstrada e que o fator de desigualdade a ser considerado implique fundamento para a correção de desequilíbrios tidos como comprometedores da convivência social em termos menos beligerantes.


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RICARDO ANTONIO LUCAS CAMARGO é Professor nos cursos de Graduação e Pós Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Professor Visitante da Università degli Studi di Firenze – Integrante do Centro de Pesquisa JusGov, junto à Faculdade de Direito da Universidade do Minho, Braga, Portugal – ex-Presidente do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública – IBAP. Escreve todo o dia 01 do mês na Revista PUB.




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