-IBRAIM ROCHA-
A escravidão e a formação do latifúndio no Brasil são os genitores do modelo brasileiro da dominação, do poder fundiário que permite reconhecer que a classe dos proprietários fundiários foram a base das classes dominantes do Brasil, e que está num processo de nova ascensão, centrada a ação e o objetivo desta classe no aspecto da valorização da renda fundiária, pela fortalecimento do monopólio da terra que serve de base para aumentar o percentual de direitos desta classe sobre o produto do trabalho.
A conhecida história de concentração fundiária no Brasil não está no passado, mas no presente. De acordo com dados do Censo Agropecuário de 2006, as diferenças entre grandes e pequenas propriedades em número de estabelecimentos e no percentual que representam no total das áreas rurais do país é abissal. Com efeito, os grandes estabelecimentos somam apenas 0,91% do total dos estabelecimentos rurais brasileiros, mas concentram 45% de toda a área rural do país, e, por outro lado, os estabelecimentos com área inferior a 10 hectares representam mais de 47% do total de estabelecimentos do país, mas ocupam menos de 2,3% da área total[1].
Esta concentração é a origem da luta pela terra, marcada pela violência expressa, constantes nos relatórios da Comissão Pastoral da Terra, num crescente de mortes no campo, que no ano de 2017 alcançou o maior número de mortes desde 2003, com 70 assassinatos, um aumento de 15% em relação a 2016, com destaque de 4 massacres, o relatório mostra que em 2019 a violência no campo aumentou em relação a 2018, 14% de crescimento no número de assassinatos, passando de 28 para 32; 7% nas tentativas de assassinato – 28 para 30 e 22% nas ameaças de morte, que passaram de 165 para 201, e em 2020, foram 18 assassinatos.[2]
Ao mesmo tempo deste período de crescimento da violência coincide com o período de “facilitação do acesso a terra” “modernização do processo de regularização fundiária” e no campo contrário uma imobilização da política de reforma agrária, o que ensejou o acionamento do STF por meio da ADPF 769, relatoria do Ministro Marco Aurélio, ajuizada em 09/12/2020, pela Contag, Contraf-Brasil, PT, Psol, PCdoB, PSB e Rede, onde se pretende, entre outras tutelas, a suspensão dos efeitos do Memorando nº 1/2019/SEDE/INCRA, do Memorando-Circular nº 6/2019/SEDE/INCRA e do Memorando nº 8/2019/SEDE/INCRA, visando a retomada da tramitação dos processos administrativos relacionados à reforma agrária, execução dos recursos previstos na Lei Orçamentária Anual de 2020, concernentes às ações da reforma agrária e elaboração de plano nacional de reforma agrária, sendo destinados, no Projeto de Lei Orçamentária referente a 2021, recursos para ações de reforma agrária e abstenção, enquanto não elaborado o referido plano, de destinação de terra pública ou devoluta federal para outro fim senão o de reforma agrária;
A Carta Constitucional de 1988 trouxe uma solene promessa de realização da reforma de ocupação democrática e produtiva da terra com a introdução no Titulo VII da Ordem Econômica e Financeira, o Capítulo III da Politica Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária, onde se pode vislumbrar 4 princípios fundamentais no que diz respeito a ocupação e concessão de terras públicas.
1- Toda propriedade rural tem de cumprir a função social, logo a destinação de terras públicas somente se justifica para este fim, art.186
2- A politica agrícola será executada com a promoção ativa de produtores e trabalhadores, a concessão de terras públicas deve ser debatida com ambos os setores, art. 187
3- A destinação de terras públicas e devolutas será compatibilizada com a política agrícola e com o plano nacional de reforma agrária, art. 188.
4- Limitações na destinação de terras publicas seja de áreas superiores a de 2.500 ha, sem prévia autorização do Congresso Nacional, exceto se para fins de reforma agrária, limitação de vendas de terras a estrangeiros, e impossibilidade de que os imóveis públicos sejam adquiridos por usucapião, art´s 188, 190, 191.
O princípio que resulta é que as terras públicas para atender a função social da propriedade devem ser instrumento de democratização de acesso a terra, considerando a histórica concentração fundiária em nosso pais, e deve então ser base para a promoção da reforma agrária, o que justifica limitar mais de uma concessão a mesma pessoa, em havendo clientes da reforma agrária a ser atendidos.
Mas desde o golpe de 2016, vêm crescendo os entraves a realização da reforma agrária, seja por meio do Decreto nº 9.311, de 15 de março de 2018, que a pretexto de regulamentar a Lei nº 8.629/1993, redefine o conceito e cujo art. 2º considera como “o conjunto de medidas que visam a realizar uma melhor distribuição da terra com acesso a políticas públicas para promover o desenvolvimento social e econômico das famílias beneficiárias”, retirando do conceito o objetivo de se realizar modificações no regime de posse e uso da terra. Este “novo” conceito claramente retira um aspecto fundamental para a efetiva realização da reforma agrária que é apresentar uma justificativa da intervenção do Estado, no sentido de redimensionar a estrutura agrária do país, com o propósito de resumi-la a mera distribuição de terras, quando aquela é antes de tudo um debate sobre mudar o modelo de ocupação da terra como forma de democratizar a propriedade do uso da terra, que gera o legítimo reconhecimento social do direito a propriedade.
Ao limitar o modelo de distribuição da terra como um direito de ocupação individual sem conexão com a reforma agrária, se facilita a médio prazo a inserção destas áreas no mercado de terras, por isso a Lei nº 13.465/2017, alterou o § 14 do art. 18 da Lei Federal nº 8.629/93, vedando a interpretação de que a concessão do título de domínio coletivo, provisório ou definitivo, seja emitido a favor de pessoa jurídica, uma clara tentativa de impedir a titulação coletiva a favor das comunidades tradicionais, que como clientes da reforma agrária, desejam modificações no regime de posse e uso da terra para a efetiva construção de sua liberdade.
A crescente alteração dos marcos normativos para legitimar o modelo de propriedade mercadoria, é reforçado quando a Lei nº 11.952/2009, que trata da regularização fundiária das ocupações incidentes em áreas da união na Amazônia Legal, que desde a sua redação originária, inclui entre os Requisitos subjetivos para a regularização da ocupação, previstos no art. 5º, inc. II, não ser proprietário de imóvel rural em qualquer parte do território nacional.
Entretanto, esta vedação foi suavizada com a alteração do art. 38 da Lei nº 11.952/2009, pela Lei nº 13.465/2017, que não previa a possibilidade do requerente da venda direta possuir mais de uma propriedade, a partir da MP 759, de 22 de dezembro de 2016, no governo Temer, passou a ser possível ser proprietário de outro imóvel, e consolidada com a alteração legislativa, mas em ambos os casos ainda se determina a observância do referido art. 5º, o que revela uma contradição.
Mas apesar da nova redação abrir a possibilidade de propriedade de outro imóvel rural, e manda observar o art. 5º, cujo o inciso II veda a titulação se tiver o requerente propriedade em qualquer outra região do território nacional, poderia ser interpretada como uma regra de adequação quando se tratar de áreas continuas, o que levaria a uma conformação do objetivo de formar um único imóvel, até o limite de 2.500 ha., o que já seria uma “flexibilização” aos objetivos constitucionais.
Porém, não satisfeito com esta regra, e sem usar da via legal ou mesmo de Medida Provisória, o Presidente Bolsonaro, por meio do Decreto Federal nº 10.952, de 24 de dezembro de 2020, introduz uma possibilidade não prevista na Lei n 11.952/2009, introduzindo no art. 36, parágrafo 3º do regulamento a possibilidade de que a venda direta se aplica às áreas contíguas ou não ás propriedades do requerente, ou, seja, na pratica permite de vez a morte do preceito que veda que as terras públicas originem mais de uma propriedade, o que foi reiterado pela IN 104, de 29 de janeiro de 2021, do INCRA, conforme art. 31, parágrafo 2º , criando espécie de usucapião para além de uma posse, ainda que limitado a um total de 2.500 ha.
Isto tudo só facilita a grilagem ou anexação de novas áreas, sem contar que estas áreas atualmente remontam a ocupações de comprovação de exercício de ocupação e exploração direta, mansa e pacífica, por si ou por seus antecessores, anterior a 22.7.2008, mas antes da alteração promovida pela Lei nº 13.465/2017, estas ocupações deveriam remontar a 1º.12.2004, ou seja, a lei tomava como critério de posse ocupações de marco temporal de cinco anos antes de sua edição, e a nova redação toma como marco temporal 9 anos de sua edição, criando o caminho de que estas datas possam ser móveis por meio de discricionariedade do legislador, porteira que deve ser alargar com a projeto da grilagem em pauta do PL 2633 que altera o marco de ocupação para o ano de 2014.
Infelizmente o STF no precedente da ADC 42 , ao discutir o código florestal prevaleceu a argumentação quanto ao marco temporal da reparação de danos em APP e RL como inclusa no âmbito das legítimas escolhas trágicas do legislador, e no âmbito de sua legitimidade democrática, o que diminui as chances de se impugnar estas mudanças de marco temporal de ocupação da grilagem.
Estas pegadas normativas então podem ser lidas conjuntamente como a retomada do poder pelo latifúndio e fortalecimento do modelo agro de produção opressiva de produção, que atende ao modelo internacional de divisão do trabalho, onde o Brasil se coloca como o centro das commodities agrícolas, que enriquecem poucos e servem de barreira de poder a reforma agrária.
[1]TERRENOS DA DESIGUALDADE Terra, agricultura e desigualdades no Brasil rural. RELATÓRIO OXFAM, novembro de 2016. (www.oxfam.org.br) [2]Conflitos no Campo no Brasil em 2017- Comissão Pastoral da Terra (www.cptbacional.org.br)
[3]Conflitos no Campo no Brasil em 2017- Comissão Pastoral da Terra (www.cptbacional.org.br)
IBRAIM ROCHA - Procurador do Estado do Pará e Doutor em Direito.
Um excelente texto do Ibraim Rocha sobre a teimosa redução da terra a um objeto sobre o qual se projeta a personalidade de quem dela se apropria, como se não fosse tal apropriação ensejadora de uma verdadeira situação de poder sobre quantos dependam não somente da capacidade de ela produzir quanto do próprio ritmo da renovação dos recursos naturais. A questão da reforma agrária enquanto disciplina de um interesse que, desenfreado, tende a remover tudo o que se oponha a sua tendência de realizar-se à plena, enquanto meio de prevenção de fatores conflitivos, não tem como ser assimilada onde a "aura sacra fames" a que se refere Virgílio no livro III de sua "Eneida" reina em todo o seu esplendor.
Ibraim, parabéns pela escolha do tema, angustiante e que está no centro da ampliação contínua do agronegócio, baseado no "latifúndio" e na precarização do trabalho no campo, com vistas ao lucro de poucos, em sentido contrário ao pretendido pela reforma agrária, de democratização da terra como base e instrumento de trabalho de grande parte da população da área rural.