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EXISTE ALTERNATIVA PARA O ECOCÍDIO?

Atualizado: 5 de dez. de 2023

-M. Madeleine Hutyra de Paula Lima-



Uma constatação devastadora foi feita pelo ecologista e escritor britânico Paul Kingsnorth, em 2007, ao afirmar que nada poderá impedir que a humanidade caminhe rumo ao próprio ecocídio. Baseia esta conclusão em sua atividade de vinte anos dedicada à causa ecológica. Em Confessions of a Recovering Environmentalist (Confissões de um ecologista sob reabilitação) afirma que não mais importa abraçar o ecologismo, pois este foi absorvido pelo capitalismo com a consequente marcha na mudança climática e extinção das espécies, sem a pretensão de barrar esses processos pela humanidade. O lado bom de sua avaliação é que a Terra irá se regenerar com o tempo. No entanto, até lá, a espécie humana já estará extinta.


Está dado o alerta: a forma de exploração econômica do capitalismo tem efeito destruidor sobre o meio ambiente e, por consequência, sobre a própria espécie humana, que sofre os efeitos adversos da natureza causada pela ação humana, enquanto a natureza tem capacidade de voltar a se regenerar muito tempo depois. Se grande parte da humanidade pudesse avaliar o problema com seriedade, haveria ainda possibilidade de reverter esta tendência suicida.


O quinto relatório Panorama da Biodiversidade Global (GBO-5) foi publicado pela Convenção das Nações Unidas sobre a Diversidade Biológica em setembro de 2020, Montreal, Canada, servindo como apoio ao desafio imposto às pessoas pela pandemia da COVID-19 como oportunidade para repensar sua relação com a natureza e analisar as profundas consequências, para seu próprio bem-estar e sobrevivência, resultantes da perda contínua da biodiversidade e da degradação dos ecossistemas. Elizabeth Maruma Mrema, Secretária Executiva da CDB afirmou: “Este relatório emblemático destaca que a humanidade se encontra em uma encruzilhada com relação ao legado que deseja deixar para as gerações futuras’”.


São muitos os avisos, mas qual o interesse real em torno das mudanças necessárias?


Milton Santos alertou sobre as inovações tecnológicas e questionava a forma de sua utilização, se haveria possibilidade de usá-las todas e quem teria acesso a elas. Teceu críticas à globalização econômica, por não globalizar os homens, pois não tem preocupação com o ser humano e suas emoções, patrimônio de todos, e apenas “globaliza as empresas, globaliza o poder” (Programa do Jô Soares, 10/07/1995). Em outra oportunidade, afirmou: “A humanidade por dois séculos gerou conhecimentos e sonhava com a possibilidade de que a ciência fosse usada a serviço do homem. E quando chega, exatamente, o momento de usufruir desses avanços, esse objetivo é deixado de lado, para que esta globalização, que presenciamos, sirva, de maneira perversa, a um número limitado de pessoas e de empresas e instituições.” (Programa Roda Viva, TV Cultura, 1997)


Na resenha que fez à publicação em pdf da última obra de Milton Santos Por uma nova globalização: do pensamento único à consciência universal (2000), a professora de Economia Maria da Conceição Tavares destaca que o livro aborda a globalização em seus vários aspectos: “como fábula, como perversidade e como possibilidade aberta ao futuro de uma nova civilização planetária”. No cenário real e perverso “os atores mais poderosos desta nova etapa da globalização reservam-se os melhores pedaços do Território Global e deixam restos para os outros. Além da polarização da riqueza e da pobreza, da segmentação dos mercados e das populações submetidas e da destruição da Natureza, o mais terrível está na “tentativa empírica e simbólica de construção de um único espaço unipolar de dominação. A tirania do Dinheiro e da Informação, produzida pela concentração do capital e do poder, tem hoje uma unidade técnica e uma convergência de normas sem precedentes na história do capitalismo”.


Apesar da situação aterradora, a obra de Milton Santos, segundo Tavares, traduz seu otimismo diante da forte contradição nesse caráter globalmente destrutivo capaz de levar à resistência parcelas crescentes da humanidade a partir de seus distintos “lugares”, onde as cidades seriam um espaço de liberdade para a cultura popular em oposição à cultura midiática de massas, como espaço de solidariedade na luta dos “de baixo” contra a escassez produzida pelos “de cima”. Assim, na falta de possibilidade de a esmagadora maioria “´consumir o Ocidente globalizado` em suas formas puras (financeira, econômica e cultural), aumentará a resistência à dominação ultraliberal e consumista propagandeada pelas grandes organizações dos meios de comunicação de massas. A alienação tende a ser substituída por uma nova consciência, uma nova filosofia moral, que não será a dos valores mercantis mas sim a da solidariedade e da cidadania”.


Em artigo recente, O mito da Máquina: Sol escaldante e o homem cego, Paul Kingsnorth reflete sobre nossa relação com a tecnologia e como ela constitui em si um sintoma de uma submissão muito mais profunda a um mito que atravessa e supera séculos e civilizações, homem e tecnologia: A Máquina. No artigo, revisita a tese de Lewis Mumford contida na obra de dois volumes The Myth of the Machine, publicada entre 1967 e 1970, na tentativa de relatar a ascensão e o triunfo do sistema de poder e tecnologia que hoje nos envolve a todos: um sistema que ele denomina ‘a megamáquina’.


Mumford faleceu em 1990, antes da internet, dos celulares e outras tecnologias, mas já previa a possibilidade com essa nova ‘megatécnica’ de que a minoria dominante criaria uma estrutura uniforme super-planetária englobando tudo em designs e operações automatizadas. Com a perda de sua atividade como uma personalidade autônoma, o homem se tornaria passivo, sem propósito, “um animal maquinalmente condicionado cujas funções serão, conforme a interpretação técnica do papel humano, alimentar a máquina ou beneficiar organizações coletivas dissociadas”. Essas organizações são as gigantes corporativas que agora nos controlam. O crescimento econômico, em todas as atividades dessas organizações, é o propósito prevalecente da economia ‘global’ construída pela máquina: todo o mais é secundário. O crescimento não possui objeto ou fim específico, e sempre serve como justificativa para problemas apontados, como pobreza, degradação ambiental, etc., dos quais é muitas vezes causa e a “única solução”.

A rede neurológica da Máquina, a Internet, avançou, sobrando poucos lugares na Terra “onde podemos escapar do incessante ruído deste ‘crescimento’ estatal-corporativo e do incessante impulso de contribuir, clicando, rolando, comprando e competindo”. O próprio crescimento se tornou um fim em si mesmo, divorciado há muito de qualquer meio. E, como apontado por Edward Abbey: “o crescimento pelo crescimento é a ideologia da célula cancerígena”. Essa máquina não é a soma das tecnologias individuais que utilizamos, como carros, celulares, etc., mas ela é uma tendência que nós interiorizamos, e essas tecnologias são produtos da máquina e não sua essência. A máquina tem sua origem remota no alvorecer da própria civilização, muito antes da revolução industrial, mas no “início da organização de uma máquina arquetípica feita de partes humanas”, chamada por Mumford como ‘megamáquina’: “uma sociedade inteira, ordenada do alto para baixo, justificada por um mito empregado pelos líderes e dirigido por uma ambição de ‘ordem, poder, previsibilidade e, acima de tudo, controle”. As sementes do atual império tecnológico global já eram plantadas nas construções das pirâmides do Egito, que beneficiavam poucos. (Veja aqui)


Kingsnorth propõe para discussão as características na manifestação da Máquina atual de nosso “soberano coletivo”: 1.sociedade centralizada, hierarquizada e de larga escala; 2.burocracia efetiva, capaz de ordenar e monitorar o cidadão; 3.força policial e militar para manter a ordem; 4.excesso populacional, predominantemente urbano, necessitado da Máquina para sobreviver e inclinado a defendê-la; 5.economia centralmente direcionada e instituições financeiras poderosas; 6.expansão via colonização (poder militar, tratados internacionais e pressão econômica) para manutenção de mercados e recursos; 7.sistema de propaganda, desenhado para normalizar todo o resto (‘a mídia’); 8.substituição de partes humanas por tecnologia e expansão desta em todas as áreas; 9.redes avançadas de comunicação universal, de propaganda e monitoramento da população (‘a rede’); 10.matriz sofisticada de produção e distribuição de bens e serviços (‘o mercado’); 11.‘eficiência’ econômica como base do valor e comércio como motor da sociedade.


Apresenta também os valores centrais da Máquina: 1. Progresso: o mito central da Era da Máquina, avanço material em todas as áreas; o futuro como valor; 2. Abertura: limites são prisões, fronteiras são ofensivas, autodefinição é um direito; exposição de todos; quebra de tabus; 3. Universalismo: os valores da Máquina são aplicáveis em todo lugar e disponíveis para todos por direito, dada sua “natureza libertária”; 4. Futurismo: negação da História, raízes são limitantes do progresso; 5. Individualismo: fragmentação de comunidades locais, unidades familiares e outras formas tradicionais de organização, por desejos e ambições individuais; 6. Tecnologismo: novas tecnologias são inevitáveis e neutras, servindo à finalidade do bem e do mal; 7. Cientificismo: ‘Ciência e razão’ são ‘objetivas’, árbitros utilitários do valor; 8. Comercialismo: valores de mercado permeiam toda a vida e visam o consumo material; 9. Materialismo: suprime deuses, fantasmas e superstições.


Segundo Kingsnorth, como a Máquina é uma história contada, o primeiro passo para desmantelá-la é parar de acreditar nela; o segundo, é parar de contá-la para os outros; o terceiro, é parar de procurar por uma melhor. O caminho é a libertação de cada um e, nas palavras de Mumford: “Para aqueles de nós que despojaram o mito da máquina, o próximo passo é nosso: pois os portões da prisão tecnocrática se abrirão automaticamente, apesar de suas dobradiças antigas enferrujadas, assim que optarmos por sair”.


Completando com Milton Santos, “A globalização atual não é irreversível (...) A mesma materialidade, atualmente utilizada para construir um mundo confuso e perverso, pode vir a ser uma condição de construção de um mundo mais humano. Basta que se completem as duas grandes mutações ora em gestação: a mutação tecnológica e a mutação filosófica da espécie humana”.


Esta mudança é uma última cartada e a única alternativa possível ao Ecocídio direcionado pelo mito da Máquina determinante do sistema de produção que se alimenta vorazmente da destruição do meio ambiente, e, pois, definitivamente é o único caminho a ser trilhado para garantir a sobrevivência efetiva da espécie humana na Terra.

 

Marie Madeleine Hutyra de Paula Lima é Advogada, Mestre/Direito Constitucional, membro do Conselho Consultivo do IBAP .


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