-DERLY BARRETO E SILVA FILHO-
Não obstante a Constituição da República de 1988 ter propiciado visível abertura democrática à presença popular nos destinos do País, ao arquitetar, em bela retórica, um Estado Democrático de Direito, o Supremo Tribunal Federal (STF), chamado a arbitrar, como previsível e desejado, não raros conflitos entre a maioria e as minorias parlamentares, seguiu trilhando o mesmo entendimento sedimentado no regime antidemocrático anterior, e sempre amparado na anacrônica teoria anglo-germânica dos internal proceedings-interna corporis acta dos séculos XVII e XIX. Foi assim, por exemplo, no julgamento do rumoroso caso da CPI dos Bancos, de 1996, em que ergueu a tradicional barreira impeditiva do reexame judicial de “matéria relativa à interpretação regimental” [1].
Artífice da Constituição autoritária de 1937, Francisco Campos sustentaria essas decisões pelas mesmas razões de um parecer que elaborou em 1923 como relator da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados:
“Ora, seria, evidentemente, violar o princípio da separação dos poderes, atribuir ao Judiciário a faculdade de rever o processo de elaboração legislativa, submetendo as decisões da Câmara, nesta matéria, ao seu controle ilimitado, pois que a própria Câmara, tomando as deliberações em questão, já deliberou, naturalmente de maneira irrevogável para ela, sobre a regularidade e observância dos processos e trâmites de formação da lei” [2].
Em que pese a “infalibilidade” do legislador vislumbrada por Francisco Campos e pelos adeptos da soberania do Legislativo, o STF, ao se furtar de resolver os conflitos entre maioria e minorias parlamentares fundados nos regimentos das Casas Legislativas, que disciplinam as regras do jogo político, abdica do seu papel de guardião de uma Constituição democrática fundada sobre o valor do pluralismo político (art. 1º, V), que repugna a tirania e a hegemonia de grupos majoritários.
E são os regimentos, aprovados por maioria simples [3], que preveem as prerrogativas da oposição (direito de obstrução, requerimento de destaque para votar em separado parte de proposição, uso da palavra, verificação de quorum e de votação, pedido de adiamento de votação, entre outros [4]), instrumentos cuja utilização procura frear os ímpetos da própria maioria.
Esse dado, por si só, evidencia a importância da jurisdição constitucional para a democracia no País. O STF não pode seguir legitimando, com a sua recusa, a supremacia da maioria parlamentar, delegando-lhe a autoridade para decidir sobre a observância e o cumprimento da ordem jurídica, com a grave peculiaridade de os critérios de julgamento nesta hipótese serem as conveniências políticas do momento (individuais, empresariais, fiscais, eleitorais, penais, econômicas, financeiras, etc.), e, dentre elas, está, por óbvio, a de cumprir ou não a própria Constituição, que deveria valer como fundamento e limite para todos, inclusive à maioria.
Ao negar sua tutela, o STF torna letra morta a democracia, conceito que não corresponde simplesmente ao governo da maioria, mas se conjuga, necessariamente, com o asseguramento e efetivação dos direitos e da participação das minorias no processo decisório.
A ausência de controle dos atos parlamentares pelo STF permite, hoje, que as agremiações majoritárias no Parlamento, além de violar as garantias da oposição mediante manobras capciosas [5], insiram nos regimentos, ao seu bel-prazer, normas inconstitucionais, que não serão judicialmente censuradas, por serem qualificadas pelo próprio tribunal – pasme-se – como questões interna corporis, ou seja, situadas para além do Direito.
É premente que o STF evolua e caminhe democraticamente para uma mudança radical em sua jurisprudência, atualmente obsequiosa à competência política deferida com exclusividade aos agentes eletivos, mas avessa aos limites constitucionais, regimentais e legais postos ao exercício legítimo do poder parlamentar majoritário.
A tutela do STF há de estar sempre ao alcance dos parlamentares que se sentirem lesados ou ameaçados em seus direitos, sejam oposicionistas ou situacionistas, cujas vozes e esferas jurídico-políticas tenham sido arbitrariamente vulnerados pelos órgãos diretivos das Casas Legislativas, aliados ou não ao Chefe do Executivo e seus extraordinários e influentes poderes de nomear (cf. descrito aqui) e de gastar ( cf. descrito aqui ).
Destarte, à guisa de exemplo, seja à luz de disposições regimentais, seja à luz do art. 142 da Lei de Diretrizes Orçamentárias nº 13.707, de 2018 – que proíbe a utilização da execução da Lei Orçamentária de 2019 para influir na apreciação de proposições legislativas em tramitação no Congresso Nacional –, seja à luz do art. 85, II, da Constituição da República – que preceitua constituírem crimes de responsabilidade os atos do Chefe do Executivo que atentem contra a Constituição e, especialmente, contra o livre exercício do Poder Legislativo, cabendo ao Senado Federal processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República, bem como os Ministros de Estado nos crimes da mesma natureza conexos com aqueles [6], como o corrompimento “no modo de exercer” do mandato parlamentar [7] –, o STF não pode, uma vez provocado, eximir-se de processar e julgar causas que questionem atos parlamentares que encaminhem votações de interesse do Poder Executivo imediatamente após a liberação de recursos referentes à aplicação de emendas de parlamentares ao orçamento.
Recentemente, um dia antes da votação em primeiro turno da PEC da Reforma da Previdência na Câmara dos Deputados, que se iniciou em 9 de julho de 2019, foram editadas 38 portarias do Ministério da Saúde, publicadas em edição extra [8] do Diário Oficial da União (D.O.U.), Seção 1, de 8 de julho de 2019, habilitando Estados, Municípios ou Distrito Federal a receberem vultosos recursos (carimbados por emendas parlamentares) que se adicionaram ao Sistema Único de Saúde (SUS), para a realização de transferências do Fundo Nacional de Saúde aos Fundos de Saúde dos respectivos entes federados.
O mesmo expediente foi adotado nos três dias subsequentes ao início votação, até a ultimação do primeiro turno, em que a proposta do governo foi aprovada por mais de 3/5 dos deputados federais: nos dias 10, 11 e 12 de julho, foram assinadas 24 portarias, igualmente publicadas em edições extras do D.O.U. nas respectivas datas de assinatura.
Por terem sido expedidos durante o processo de votação de interesse do Executivo, os 64 atos ministeriais visaram claramente a corromper a vontade e a liberdade de atuação dos deputados, a cooptá-los a votar em favor de sua proposição, influindo, assim, no resultado da deliberação parlamentar.
Parafraseando James Madison, pode afirmar-se que é contra a ambição atrevida de todo e qualquer governante – e não apenas do legislador – que o povo deve cultivar todo o seu zelo e exaurir todas as suas precauções.
Por isso, na ambiência de um Estado Constitucional democrático e pluralista – como o brasileiro autoproclama-se –, a sociedade deve esperar que o STF cumpra o seu papel de guardião da Constituição e garanta que as manifestações parlamentares sejam livres, independentes, autônomas e representativas da vontade dos eleitores, e não adrede compromissadas e alinhadas com a Presidência da República, seus estratagemas e seus “incentivos”.
Seria esperar demais?
[1] O requerimento de instalação da comissão foi arquivado pelo Senado Federal por não ter preenchido requisito constitucionalmente não previsto para sua constituição (“limite das despesas a serem realizadas”), mas abusivamente inserido no Regimento Interno senatorial pela maioria parlamentar para estorvar a deflagração de CPIs inconvenientes ao governo.
[2] Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1956, vol. II, p. 120.
[3] Diferentemente, as Constituições espanhola e italiana exigem o quorum de maioria absoluta para aprovação dos regimentos, e assim asseguram maior consenso possível entre os parlamentares.
[4] Em Portugal, por exemplo, as minorias contam com o direito constitucional à determinação da ordem do dia de um certo número de reuniões, além de um estatuto legal próprio, o “Estatuto do Direito de Oposição” (https://www.parlamento.pt/Legislacao/Documents/Legislacao_Anotada/EstatutoDireitoOposicao_simples.pdf).
[5] Por exemplo, a supressão do interstício, por deliberação majoritária, entre os dois turnos de votação de propostas de emendas à Constituição (https://www.revista-pub.org/post/18072019).
[6] Art. 52, I, também do diploma constitucional.
[7] Art. 6º, 2, da Lei nº 1.079, de 1950.
[8] Segundo o art. 17, parágrafo único, da Portaria nº 283, de 2018, do Diretor-Geral da Imprensa Nacional Edições, é da competência do Ministro de Estado Chefe da Casa Civil da Presidência da República autorizar a publicação de edições extras do D.O.U.
DERLY BARRETO E SILVA FILHO - Procurador do Estado de São Paulo, Doutor e Mestre em Direito Constitucional pela PUC-SP, membro do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública, ex-Presidente do Sindiproesp (biênios 2015-2016 e 2017-2018), ex-Conselheiro Eleito da PGE-SP (biênio 2013-2014) e autor do livro intitulado “Controle dos atos parlamentares pelo Poder Judiciário” (ed. Malheiros). Seus artigos são publicados todos os dias 18 de cada mês na Revista PUB - Diálogos Interdisciplinares.
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