- Leandro Bernardo -

Ano se encerra, outro começa, mas, infelizmente, uma realidade insiste em se manter: a violência no campo sobre grupos marginalizados socialmente. Entre os episódios mais recentes e de maior repercussão, pode-se citar o atentado ocorrido no assentamento Olga Benário, em Tremembé/SP e que resultou no duplo homicídio de moradores, integrantes do Movimento Sem Terra (MST), em 10 de janeiro último [1].
Na porção brasileira da região platina - sobretudo a oeste dos estados do sul do país e sul de Mato Grosso do Sul -, são recorrentes as práticas de violência contra povos indígenas. No início do ano, indígenas da etnia Avá-Guarani sofreram ataques de pistoleiros na região de Guaíra/PR [2], e no ano de 2024, indígenas Guarani Kaiowá foram atacados na Terra Indígena (TI) Panambi-Lagoa Rica, em Douradina (MS), por grupo armado [3].
Comunidades quilombolas também são alvo frequente da violência de grupos organizados. É o caso, p. ex., da Comunidade Quilombo do Baú, no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, que tem sido vítima de atentados, com disparos de armas de fogo, ameaças de mortes por grupos que possuem interesse em suas áreas[4].
Os casos acima citados são meros exemplos dentre outros milhares, que se inserem dentro de processos seculares de violências sofridas por grupos marginalizados socialmente, quando sua presença se apresenta como obstáculo a projetos de expansão ou consolidações de ocupações territoriais de poderosos grupos de interesse.
Na literatura ficcional brasileira, dentre outras, podem ser citadas obras como “São Bernardo”, de Graciliano Ramos e “Morte e Vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto, escritas, respectivamente, em 1934 e 1955, e que retratam a realidade da dureza da vida no campo e que, em grande medida, encontram diversos pontos de contato com a forma de vida de milhares de pessoas pobres na atualidade, que aguardam o reconhecimento de seus direitos de acesso à terra.
Das concessões de sesmarias pela Coroa portuguesa, passando pela legitimação de posses em meados do século XIX - Lei de Terras de 1850 –, pelo início do período republicano – com a transferência das terras devolutas aos estados e consolidação da política coronelista -, projetos de ocupação a oeste do país – no período getulista, com sua Marcha para o Oeste –, e da região amazônica – sobretudo no período ditatorial iniciado em 1964 –, o poder público possui grande responsabilidade na forma de organização espacial do campo, com superconcentração de imensas áreas de terras em favor de pequenos grupos beneficiados [5] e avanço sobre áreas previamente de ocupação tradicional indígena, de comunidades quilombolas e outros grupos de pequenos agricultores, populações tradicionais.
Infelizmente, como denunciava Eduardo Galeano, no início da década de 1970, na clássica obra “Veias abertas da América Latina”, tais processos de concentração de terras e marginalização e exclusão de direitos das massas populacionais foi a regra na formação das sociedades latino-americanas, de forma geral.
No Brasil, nas últimas décadas a violência contra aqueles grupos marginalizados tem se dado, também, como resposta ao processo de constitucionalização e maior explicitação de seus direitos de acesso à terra - com a constituição de 1988 -, e como reação a qualquer mínima tentativa de cumprimento pelos poderes constituídos daquele comando constitucional garantista de direitos sociais territoriais.
Tal constatação ajuda a explicar parcialmente o motivo pelo qual, p. ex., no ano de 2023, o estado do Mato Grosso do Sul apresentou o segundo maior número de assassinatos de indígenas, com 43 pessoas, praticamente empatado com primeiro colocado, o estado de Roraima – em que o número de homicídios alcançou o total de 46 pessoas –, mesmo que a população indígena do Mato Grosso do Sul esteja longe de figurar entre as maiores do país [6]. Infelizmente o ano de 2023, longe de ser exceção, manteve a alta média anual de mortes no estado do Mato Grosso do Sul.
Processos de demarcação de terras indígenas (art. 231 da C.R.) , titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos (art. 68 dos ADCT), implantação de programas de reforma agrária ou regularização fundiária em favor de grupos menos favorecidos (art. 184 da C.R), dentre outras políticas de acesso à terra, possuem alto grau de judicialização – por todos, basta relembrar a verdadeira saga da discussão da jurisprudência criada pelo STF do chamado “marco temporal”, que limitava a garantia demarcatória de terras indígenas no país [7] e, ao final, em 2024, teve resultado favorável aos indígenas, na fixação da tese em sede de Repercussão Geral no Tema 1.031 pelo STF – e são objeto de todo tipo de ação, inclusive legislativa, para dificultar o ingresso daqueles grupos beneficiários nas áreas a serem disponibilizadas.
É urgente a consolidação e ampliação de processos que garantam a ampliação do acesso à terra em favor dos grupos mais vulneráveis no país, como condição mínima para busca de uma duradoura paz no campo e superação de um passado de insegurança e dependência de fatores políticos, nem sempre favoráveis às camadas mais pauperizadas [8].
Bibliografia
[1] Vide: “Duas pessoas são mortas e seis feridas em ataque a assentamento do MST”. In: Agência Brasil. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2025-01/duas-pessoas-sao-mortas-e-seis-feridas-em-ataque-assentamento-do-mst. Acessado em 20 de jan. de 2025.
[2] Vide: “Os ataques a indígenas Avá-Guarani no Paraná”. In: Nexo Jornal. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/externo/2025/01/12/indigenas-ava-guarani-sofrem-ataques. Acessado em 20 de jan. de 2025.
[3] Vide: “Nota sobre ataque a indígenas Guarani Kaiowá em Mato Grosso do Sul”. Disponível em: https://www.gov.br/povosindigenas/pt-br/assuntos/noticias/2024/08/nota-sobre-ataque-a-indigenas-guarani-kaiowa-em-mato-grosso-do-sul. Acessado em 20 de jan. de 2025.
[4] Vide: “Comunidade do Quilombo Baú (MG) denuncia disparos contra suas casas: “querem nossas terras”. In: Brasil de Fato. Disponível em: https://www.brasildefatomg.com.br/2024/11/14/comunidade-do-quilombo-bau-mg-denuncia-disparos-contra-suas-casas-querem-nossas-terras. Acessado em 20 de jan. de 2025.
[5] De acordo com dados da OXFAM Brasil, menos de 1% de proprietários rurais são detentores de quase 50% de toda área rural do Brasil. Vide: “Terras e Desigualdades”. Disponível em: https://www.oxfam.org.br/justica-social-e-economica/terras-e-desigualdade. Acessado em 20 de jan. de 2025.
[6] Vide: “Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil”. Disponível em: https://cimi.org.br/2024/07/relatorioviolencia2023/. Acessado em 20 de jan. de 2025.
Enquanto o Amazonas tem cerca de 490.854 indígenas, com base nos dados do Censo Demográfico do IBGE, o Mato Grosso do Sul tem cerca de 116.346 indígenas. Vide: “Os indígenas no Censo 2022”. Disponível em: https://educa.ibge.gov.br/criancas/brasil/nosso-povo/22324-os-indigenas-no-censo-2022.html.
[7] Sobre o tema, vide: BERNARDO, Leandro Ferreira; BOTELHO, Tiago Resende. La necesidad de superación del ?hito temporal? por el Tribunal Supremo brasileño en los procesos de demarcación de tierras indígenas. In: Roberto Cammarata & Marzia Rosti. (Org.). I popoli indigeni e i loro diritti in America Latina. Dinamiche continentali, scenari nazionali. 1ed.Milano: MIlano University Press, 2023, p. 171-189.
[8] Vide o excelente vídeo-denúncia “Mentiras contra MST alimentam execuções no campo”, produzido pelo observatório “De olho nos ruralistas”, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=29KIeTDkzp8. Acesso em 21 de jan. de 2025.
Leandro Ferreira Bernardo, Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da USP, Procurador Federal, membro do IBAP.
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