top of page

Entre emendas e intervenções

  • Foto do escritor: Revista Pub
    Revista Pub
  • há 3 dias
  • 7 min de leitura

O atual cenário da separação de poderes no Brasil e o porquê não é tudo culpa do “Supremo”


-LEANDRO BERNARDO-




Câmara dos Deputados - plenarinho.leg.br 
Câmara dos Deputados - plenarinho.leg.br 

No Brasil dos últimos tempos os debates e críticas sobre os limites das funções estatais têm se tornado cada vez mais presentes. Anos atrás, as críticas se concentravam no fortalecimento do Poder Executivo dentro da lógica da tripartição, sobretudo diante da expansão das chamadas medidas provisórias e do uso do orçamento como importante instrumento de barganha com o Congresso. Hoje, o cenário é diverso: outros poderes são alvo das principais críticas.


O protagonismo do Poder Judiciário, em especial do Supremo Tribunal Federal, tem incomodado parcelas relevantes da sociedade, que muitas vezes não detêm a compreensão do significado da lógica da supremacia do texto constitucional no ordenamento jurídico brasileiro, que tem como consequência a imposição do reconhecimento de primazia da Constituição sobre as demais normas do sistema e a vinculação de todos os poderes constituídos ao seu comando[1].


Na atualidade, sobretudo diante de um cenário de graves turbulências políticas e institucionais, de desvirtuamento de funções do Poder Executivo - que culminou numa tentativa de golpe de estado –, somada a uma ineficiência do sistema de freios e contrapesos por parte do legislativo, possibilitou a assunção pelo STF de um papel de protagonismo.


Todavia, o novo rearranjo institucional não se dá sem o apontamento de severos questionamentos. Muitas vezes os fundamentos para tais críticas se baseiam numa análise do sistema constitucional e supostas ações inconstitucionais – são citados como exemplos a instauração de inquéritos no âmbito do STF, relatados pelo Min. Alexandre de Morais, durante o período do Governo Bolsonaro, com decisões que muitas vezes não foram requeridas ou contrárias ao postulado pela Procuradoria-Geral da República[2].


Contudo, ao lado da análise constitucional-jurídica, a compreensão do contexto carece, mais do que tudo, de uma reflexão mais ampla, a partir de aportes de outros ramos das ciências sociais, sob pena de que o exame do problema não compreenda a totalidade dos fatores que o geram.


O saudoso mestre Dalmo de Abreu Dallari, em seu clássico “Elementos da Teoria Geral do Estado”[3], aponta que, em que pese não possa ser descurado do escopo da Teoria Geral do Estado os aspectos jurídicos,  aquele ramo do estudo “vai além disso, cuidando também dos aspectos não-jurídicos, uma vez que se dedica ao estudo do Estado em sua totalidade”.


Nesse sentido, a Teoria Geral do Direito fornece importantes aportes para a compreensão do complexo embate entre as funções ou poderes estatais e nos alerta para a constatação quase óbvia de que a compreensão das graves fissuras na sociedade política brasileira em todo seu conjunto, e não apenas a partir de análises fragmentadas de um poder específico, é um caminho inescapável para um melhor diagnóstico.


Nesse sentido, um aspecto inicial que não pode deixar de ser observado, inicialmente, diz respeito às importantes alterações na correlação de forças entre as funções estatais, sobretudo a partir do avanço dos poderes do Legislativo. Merece especial atenção a inserção das chamadas emendas parlamentares impositivas, a partir da Emenda Constitucional 86/2015, que transferiu ao Legislativo prerrogativa sobre o direcionamento de parcelas do orçamento público, até então concentradas no âmbito de atuação do Poder Executivo.


Como muito bem resume Marcia Semer[4],


A EC 86/2015, por assim dizer, abriu a porteira para outras investidas congressuais que redundaram em normativas mais invasivas, a exemplo das emendas de bancada e as emendas pix, sempre gestadas em situações onde a liderança executiva se mostrava enfraquecida. Assim, à EC 86/2015, sobrevieram as EC 100/2019, 105/2019 e 122/2022 que alargaram a fatia orçamentária posta para direcionamento pelos parlamentares, além de conceberem formas esdrúxulas e pouco auditáveis de distribuição dos recursos orçamentários dessa natureza


De função tipicamente chanceladora da proposta de orçamento e de fiscalização de sua correta execução pelo Poder Executivo, o Legislativo passou a destinar, diretamente, importantes fatias de verba pública, que chegaram em 2025 à impressionante marca de cerca de R$ 50 bilhões[5].


Como consequências negativas dessa distribuição de pedaços relevantes do orçamento público em favor do congresso, podem ser citados os graves problemas para fiscalização de seu adequado uso, além da dificuldade de demonstração de necessidade/utilidade de tais gastos, muitas vezes descolados de uma política pública integrada e racionalmente construída. Nem se diga do gigantesco potencial de desvios criminosos de dinheiro público, como várias investigações realizadas no âmbito do STF começam a expor[6].


A lógica das emendas parlamentares, ainda, permitiu uma maior concentração de poderes nas mãos das presidências e lideranças das casas legislativas e partidárias, de modo que se torna mais comum a cooptação de votos dos parlamentares em troca de liberação de emendas. Não à toa tem sido comum a ocorrência de votações quase unânimes ou com alto índice de concordância em temas sensíveis aos interesses dos líderes das casas ou aos interesses dos próprios congressistas, em especial quando se veem ameaçados pela perda do acesso a emendas ou a serem responsabilizados pelo seu mau uso[7].


Diante dessa nova realidade, de profundas alterações na correlação de forças entre Executivo e Legislativo, o Judiciário tem sido chamado, cada vez mais, a apresentar saídas, sobretudo à sobrevivência do republicanismo e do regime democrático no país. Embora se utilizando de medidas muitas vezes atípicas, tais medidas encontram justificativa na profunda alteração naquela correlação de forças.


Tal diagnóstico não significa que a atuação do Judiciário no atual contexto não seja passível de críticas ou objeto de aprimoramentos. Apenas a título exemplificativo de excesso na atuação do STF, na tentativa de reequilibrar as forças dentro do Estado, pode ser citada a decisão do Min. Gilmar Mendes, ao julgar a Lei do Impeachment, Lei 1.079/1950, na ADPF 1259 E 1260, que reconheceu a não recepção do art. 41 da referida lei e deferiu medida cautelar para conferir interpretação conforme à constituição a fim de limitar ao o Procurador-Geral da República a legitimação exclusiva para apresentação de denúncias para abertura de processos por crimes de responsabilidade de membros do Poder Judiciário[8].


É evidente que a lei do impeachment deve ser reanalisada à luz do texto constitucional de 1988, de modo a garantir maiores garantias aos ministros do STF em sua função judicante, sobretudo no atual cenário em que os embates com o legislativo tendem a se tornar mais frequentes e que há um aumento das ameaças aos ministros do STF de serem chamados a responder a processos por crimes de responsabilidade, em retaliação à atuação judicial que contraria interesses dos congressistas. É claro, também, que o STF possui legitimidade para analisar a adequação da legislação anterior à constituição de 1988 à luz do texto constitucional.


De outro lado, é inegável que os sistemas de responsabilização dos agentes estatais, mesmo os integrantes do mais importante tribunal do país, não podem ser tão restritivos a ponto de significar, na prática, uma real impossibilidade de punição.


Destaque-se que no exemplo citado, o próprio Ministro Gilmar Mendes reconheceu, posteriormente, o equívoco da decisão, de modo que suspendeu os efeitos da medida, a fim de que aguarde “deliberação legislativa mais adequada, refletindo o amadurecimento do debate institucional e a atenção às garantias constitucionais”.


Além da atuação processual, as condutas pessoais dos membros do Judiciário não podem ser infensas à crítica e controle social. A excessiva proximidade de membros dos tribunais superiores com o mundo político, econômico, torna muito bem-vinda a proposta de criação de um código de conduta para integrantes das cortes superiores, apresentada pelo Ministro Edson Fachin, Presidente do STF [9].


A recuperação do equilíbrio entre os poderes apresenta-se como medida premente, sobretudo na atual quadra, em que se identifica cada vez mais a presença do crime organizado dentro das estruturas de poder, sob pena de uma instauração de um verdadeiro regime “AnarcoNarcoEstado”, caracterizado por (1) uma perda da funcionalidade da máquina estatal em garantir os comandos constitucionais e realizar as políticas públicas previstas na constituição em favor da sociedade, (2) pelo ingresso do crime organizado nos espaços da política institucional – em especial por milícias e facções criminosas ligadas ao narcotráfico –, cooptando grupos político-partidários e pela (3) ausência de punição dos agentes públicos.


Assim, exigir mudanças na forma de atuação do Poder Judiciário, sem se atentar para as recentes mudanças na estrutura do Estado brasileiro e que representaram um evidente desequilíbrio entre os poderes estatais, mostra-se como uma análise inadequada, em razão de sua incompletude.



Notas


[1]  BITTAR, Eduardo C. B. Introdução ao estudo do direito: humanismo, democracia e justiça. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 84.

[2] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ministro Alexandre de Moraes rejeita pedido da PGR para arquivar inquérito contra Bolsonaro. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=491823&ori=1. Acessado em 16 de dez. de 2025.

[3] DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 2ª. Ed. Editora Saraiva: São Paulo, 1998.

[4] SEMER, Marcia. Tá na cara. Você não vê? In: Revista Pub: diálogos interdisciplinares. Disponível em: https://www.revista-pub.org/post/26052025. Acessado em 16 de dez. de 2025.

[5] AGÊNCIA BRASIL. Orçamento de 2026 reserva R$ 40,8 bi para emendas parlamentares. https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2025-08/orcamento-de-2026-reserva-r-408-bi-para-emendas-parlamentares.

[6] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. STF rejeita recursos em caso de deputados tornados réus por pedir propina para emendas ao Orçamento. Disponível em: https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/stf-rejeita-recursos-em-caso-de-deputados-tornados-reus-por-pedir-propina-para-emendas-ao-orcamento/. Acessado em 16 de dez. de 2025.

[7] A Câmara aprovou, em setembro de 2025, em segundo  turno, a Proposta de Emenda à Constituição 3/2021, apelidada de PEC da Blindagem, por uma votação de 344 votos favoráveis contra 133 contrários. Felizmente a referida proposta foi rejeitada pelo Senado Federal.

[8] STF, ADPF 1259 MC, Relator Min. GILMAR MENDES, Julgamento: 03/12/2025, Publicação: 04/12/2025

[9] O IBAP apresentou nota pública, em 10 de dez. de 2025, em que defende, dentre outras medidas de defesa da democracia, “a instituição de um código de conduta para os membros dos Tribunais Superiores, com ênfase em transparência, prevenção de conflitos de interesses e integridade institucional, coibindo-se a ocorrência de possíveis ilícitos administrativos e penais, como violação de dever funcional e tráfico de influência”.



Leandro Ferreira Bernardo, Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da USP. Procurador Federal, membro do IBAP. escreve todo o dia 22 do mês



Comentários


Revista PUB - Diálogos Interdisciplinares

  • Facebook B&W
  • Twitter B&W
  • Instagram B&W
bottom of page