top of page

Onde começa o meridiano

  • Foto do escritor: Guilherme José Purvin de Figueiredo
    Guilherme José Purvin de Figueiredo
  • 24 de abr.
  • 4 min de leitura

-Guilherme Purvin-





O campo era de paralelepípedos e as balizas eram marcadas por pedaços de tijolos, dois passos de extensão apenas, para que ninguém precisasse ser escalado como goleiro. Jogávamos no larguinho que ficava bem no meio da rua, entre as avenidas Dom Pedro I e Teresa Cristina, um trecho da rua Dr. Ricardo Daunt que se alargava para abrigar automóveis da Gráfica Asbahr e da Marmoraria Tasso. Como nunca havia carros estacionados ali, aquele era o local ideal para as nossas partidas à tardezinha, depois do almoço e das lições de casa.


O Evandro, que morava na vilinha, e o Primo, da Dom Pedro I, eram os maiores craques da região. Se jogassem juntos, somente os dois, venceriam facilmente todos outros — Marinho, Michelin, Bruninho, Carioca, Caco, Guimi, Molloy, Turco, Cebola, Magrão, Blue e eu. Por isso, todo início de jogo eles eram proclamados capitães e faziam a escolha dos seus jogadores, depois do par-ou-ímpar.


Minha maior honra era ser chamado em primeiro lugar pelo Primo. Estranhamente, porém, Evandro chamava o Blue na sua vez. Aos onze anos de idade, eu tinha plena consciência de que era o pior jogador de futebol da rua. Se não o pior, pelo menos um dos dois mais lastimáveis. O outro era justamente o Blue, que morava na Rua General Eugênio de Melo.


Levou algum tempo para eu entender o código estabelecido pelo Primo e pelo Evandro: eles procuravam demonstrar um para o outro que não precisavam de ninguém razoavelmente bom para vencerem. Se Evandro e Primo valiam 10 pontos cada um, Evandro + Blue e Primo + Guilherme continuavam somando 10.


A bravata parava aí. Na sequência, Primo escolhia o Turco, Evandro escolhia o Marinho, e assim por diante, até que todos estivessem escalados. Primo me orientava:


"Fique na banheira!"


Isso significava ficar diante do gol adversário, que permanecia sempre desguarnecido. Então, no meio do ataque adversário, ele desarmava o atacante e chutava. A bola percorria uma parábola no ar e vinha diretamente aos meus pés. Diante do gol, ninguém se incomodava em correr em minha direção. A cena era certa: eu tropeçava e, a dois metros da linha, chutava para longe, eventualmente para a lateral!


Mas nem sempre os colegas tinham a mesma deferência. Evandro e Primo, diferente dos demais, já trabalhavam e, por isso, raramente podiam participar das peladas. Nesses casos, Marinho, Michelin, Caco, Turco, escolhiam sempre os melhores. Foi nessas ocasiões que eu me certifiquei que devia ser ainda pior do que o Blue: se houvesse número ímpar de jogadores, eu era designado para ser bandeirinha ou gandula.


Decidi então reverter a situação. Reuni-me com o César, o Antônio, o Dante e outros colegas que não costumavam participar dos jogos no larguinho e propus a criação de um clube. O pai do Antônio, um bem-humorado importador de vinhos e rádio-amador, propôs: "Grêmio Esportivo Ricardo Daunt".


O nome foi prontamente aprovado, mas fiquei cismado com a sigla: "GERDA". Seríamos alvo fácil de piadas. Ainda assim, corri para minha casa, apanhei a máquina de escrever Remington de meu pai (norte-americana, sem acentuação) e criei o Estatuto do GERDA. Num dos artigos do estatuto, datilografei os nomes dos membros do clube e, considerando que tivera todo o trabalho de lavrar o documento, nada mais justo do que me autoproclamar presidente do clube. Se era pra ser sempre gandula, que ao menos fosse um gandula-cartola.


Todos ficaram impressionados com a folha de papel datilografada com o nome do clube, as disposições gerais e a data de fundação: 15 de agosto de 1968. No entanto, ninguém levou a sério o dispositivo que impunha o meu nome como representante máximo da entidade.


Persisti na minha missão. Saí em busca de times adversários no bairro. Marcamos uma partida oficial de futebol de salão na quadra do Corpo de Bombeiros, que ficava entre o Museu Paulista e o Museu de Zoologia, na Avenida Nazaré, contra o time da Rua Itapari. Reforçamos a composição do time com os colegas do larguinho que não haviam participado da fundação do clube.


De nada valeu o esforço. Naquela noite não fui designado sequer para gandula. Era um momento muito importante e o GERDA não podia perder tempo com moleques que demoram para devolver a bola ou a atiram para longe.


Foram duas partidas. Na primeira, vencemos. Na segunda, o Itapari levou a melhor. Voltamos fazendo arruaça e gritando "Taqueopari" toda vez que nossos adversários diziam "Itapari". Uma grosseria enorme, levando em conta que eles haviam comparecido acompanhados de suas mães e irmãs. Elegantemente, em nenhum momento eles revidaram com a rima mais óbvia: "Gerda é uma merda!"


Mesmo assim, eu não perdia a esperança de um dia marcar um gol no larguinho — de preferência que não fosse contra. Se não na vida real, quem sabe numa folha de papel datilografada. Afinal, entre presidir um clube e jogar como o Primo ou o Evandro havia uma enorme diferença. Foi assim que comecei a descobrir, por uma prematura via jurídica (elaboração de um estatuto social), as possibilidades da escrita criativa.


Eu não imaginava que Gerda era um nome comum na Alemanha. Nove anos mais tarde, no Largo São Francisco, comecei a aprender a redigir contratos e estatutos, mas o mais interessante foi conhecer uma personagem histórica, com aquele nome. Era uma senhora alemã de seus 30 anos, loira, gorducha e corada, que, na época em que jogávamos nossas peladas, estava participando da histórica tomada da Faculdade de Direito pelos estudantes — o famoso episódio de 23 de junho de 1968 na luta contra a ditadura militar.


Nunca levei jeito para esportes e a timidez era grande demais para namorar alguma das muitas meninas por quem me apaixonei ao longo da infância e adolescência, paixões que, por vezes, chegaram a durar até um mês. Tornei-me, então, datilógrafo oficial de meus sonhos e fantasias. Neles, dissimulava a realidade da dor com cenas de um humor insano e surreal, construindo um pequeno universo em que o GERDA era a cúpula política de uma ditadura dos mais hábeis, uma quadra de futebol onde ninguém conhece as linhas divisórias e marcas da área, um planeta sem paralelos em que ninguém sabe onde começa o meridiano.

Guilherme Purvin, professor de Estudos Ambientais nas áreas de Literatura e Direito, é pós-doutorando junto ao Depto. de Geografia da FFLCH-USP, Coordenador Internacional do IBAP e da APRODAB e ficcionista. No dia 26 de abril, sábado, a partir das 16h30, estará lançando seu novo livro de contos, "Onde começa o hemisfério" (Ed. Terra Redonda) no bar Canto Madalena (Vila Madalena - São Paulo/SP).




Comments


Revista PUB - Diálogos Interdisciplinares

  • Facebook B&W
  • Twitter B&W
  • Instagram B&W
bottom of page