-RICARDO ANTONIO LUCAS CAMARGO-
Não sou católico e tenho vários questionamentos à utilização da religião como base da ética (veja aqui). Mas não posso deixar de apontar para a incoerência de católicos que aplaudem o ataque realizado, no dia 12 de outubro, por bolsonaristas à Missa celebrada em Aparecida, os mesmos que davam como uma questão de honra tratar como um crime de lesa-divindade a manifestação, poucos meses atrás, em frente a Igreja de N.S. do Rosário dos Pretos, em Curitiba, na qual não houve interrupção dos serviços religiosos, como o reconheceram mais tarde mesmo os clérigos, levando à caracterização como quebra de decoro parlamentar a atuação do vereador Renato Freitas, comentada em excelente artigo nesta revista pelo Prof. Carlos Marés (veja aqui). Um ato cujo pressuposto, a bem de ver, era compatível com o Cristianismo dos Evangelhos, onde é narrado o salvamento de Maria Magdalena da morte por lapidação que lhe iam dar os guardiões da Moral e dos Bons Costumes, onde são chamados esses mesmos guardiões de "sepulcros caiados", foi visto como manifestação "cristofóbica". E agora, os "bons patriotas cristãos" atacam a Missa no maior santuário católico do Brasil, em nome de "Deus-Pátria-Família-Liberdade", porque o Arcebispo disse, em sua Homilia, ser necessário combater os dragões do ódio, da fome, da mentira, e apontou para a pandemia como um dragão, sem mencionar os nomes de qualquer dos pleiteantes à Presidência da República...
Confesso que gostaria de conhecer melhor essa Bíblia dos que, desde a eleição de 2018, receberam a alcunha de “bolsominions”, em alusão a personagens de um desenho animado que sempre queriam ter como líder a ser seguido incondicionalmente o mais completo vilão. Essa Bíblia que, segundo eles, fala no “PT”, na “ideologia de gênero”, nas “pessoas de bem”, no “uso de armas como expressão máxima da liberdade”. Essa Bíblia, para a qual as palavras “fome”, “doença”, “desemprego”, “analfabetismo”, estão proscritas, porque traduziriam “propaganda do Capeta” ou “blasfêmia contra Deus”. Essa Bíblia em que Jesus ceava com César e Herodes e apreciava combates de gladiadores, abençoou os que comerciavam no Templo e prometeu o Reino dos Céus a quem atirasse a primeira pedra na “vagabunda”, ordenou, quando Pedro cortou a orelha de Malcos, que terminasse o esquartejamento do atrevido. Essa Bíblia que dá como causa da morte de Jesus um atentado dos rebeldes à magnânima autoridade romana e não uma execução de sentença por agentes públicos. Essa Bíblia que tem uma passagem em que diz Jesus que quem não odeia os inimigos de Deus, não O ama verdadeiramente. Gostaria, sim, de conhecer essa Bíblia.
Cheguei a ver um pronunciamento no sentido de que o verdadeiro cristianismo estaria nos Pastores que combatem o lulopetismo e que Aparecida seria, na realidade, um antro de exploração da fé, louvando, pois o ataque. A que ponto se chegou! É de notar que os apoiadores do ocupante atual do Trono Presidencial, invariavelmente, quando são líderes religiosos, ou enriqueceram à custa dos fieis ou usam estes como cabos eleitorais para alavancarem as respectivas carreiras políticas. Liderança espiritual não é nem meio de ganhar a vida nem acesso ao poder temporal. Dois balizadores da sinceridade da fé. Com todo o perigo que representaram pelo fanatismo, Antônio Conselheiro, Jacobina Maurer e o Monge João Maria ainda são melhores que essa gente, no quesito sinceridade.
Falam em “Deus-Pátria-Família”? Em nome do “Bem da Pátria”, deram de ombros aos incêndios das principais florestas, às invasões de terras indígenas e a 685.000 mortes em razão de deliberada negligência durante a pandemia; em nome de “Deus”, admitiram atos de intolerância que culminaram no ataque à mais tradicional comemoração católica do País; em nome da “Família”, até mesmo se falou em "pintar clima" com adolescentes refugiadas. É isso que os nossos conservadores consideram a proteção dos VALORES TRADICIONAIS contra ideologias exóticas malsãs?
Um recado, agora, a católicos neointegralistas, que desautorizam até mesmo falas do Papa que contradizem os dogmas que os conduziram a apoiar o hoje pretendente à reeleição: os que usam a religião como pretexto para legitimarem sua visão excludente da humanidade terão de resolver se é mais provável que eles ou que o Papa tenha apostatado.
Ricardo Antonio Lucas Camargo - Professor nos cursos de Graduação e Pós Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Professor Visitante da Università degli Studi di Firenze – Integrante do Centro de Pesquisa JusGov, junto à Faculdade de Direito da Universidade do Minho, Braga, Portugal – ex-Presidente do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública – IBAP.
As incongruências e hipocrisias em nome de Deus estão bem descritas em seu ótimo texto, Ricardo Camargo. Obrigada.
Sua reflexão e seu protesto me representam. Obrigada por verbalizá-los, Ricardo Camargo