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PROTESTOS, E MAIS PROTESTOS: EDUCAÇÃO, FILOSOFIA E SOCIOLOGIA “PRA QUÊ”, NÃO É?

-DANIEL FERRAZ-

Av. Paulista, 15 de maio de 2019, início do protesto contra os cortes da educação brasileira. Foto: Daniel Ferraz

Sim, sou professor! Sou professor/educador e formo professores há mais de 20 anos. Com isso, este texto, ao defender veementemente a educação brasileira, tem como inspiração intertextos de todos os meus colegas da Revista PUB, em especial os de Elizabeth Harkot de La Taille (Destecido e desfiado) e de Lincoln Ferreira Secco (A ratoeira - universidade deve resistir sem cair em provocação do governo).


Inicio a nossa conversa com os recentes protestos contra os cortes de Bolsonaro à educação.


As mídias de massa, como poderíamos imaginar, anunciaram entre 210.000 e 250.000 manifestantes no dia 15 de maio de 2019 na Av. Paulista. Eram estudantes de toda a cidade de São Paulo, do estado de SP, professores, famílias inteiras inconformadas com o ataque à educação universitária e à EDUCAÇÃO BÁSICA, há de se registrar!


Nesses momentos de protestos, as instituições oficiais e mídias de massa se digladiam com os números, prova sinistra e cabal da fácil manipulação de uma “notícia bem contada”. Claramente, aqueles que apoiam o governo tiveram o receio (medo?) de constatar um mar de gente tomando a Paulista.


Já que esse desgoverno se utiliza de uma fórmula bizarra, qual seja, números, do governo, produzindo “a verdade” + religião (falam em nome do Cristianismo) + política (Brasil acima de tudo, Deus acima de todos) = governar um país, vamos aos números: em relação ao protesto supracitado, de acordo com a PM e outros diversos sites que calculam a densidade de ocupação em protestos na Paulista, 1.000.000 de paulistanos (sim, um milhão - http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2015/03/protesto-contra-governo-fecha-avenida-paulista-em-sao-paulo.html) ocuparam a Av. Paulista (e depois a Av. Brigadeiro) por mais de 5 horas. Se ampliarmos a pesquisa, multiplica-se enormemente o número de professores e estudantes espalhados em TODAS as capitais do país, e em centenas de cidades que nem sequer foram computadas pelas mídias de massa.


Para o presidente, são milhões de “idiotas úteis”, seja lá o que isso significa! Pois é, caro leitor, dá vergonha ouvir tal declaração, pois ela engendra total falta de articulação, coesão e, com isso, falta de conteúdo mínimo para a comunicação efetiva e, para “fechar com chave de ouro”, a declaração advém do presidente de um país.


No dia 5 de junho de 2019, foi anunciado, pelo governo, mais um corte de 2.000 bolsas da CAPES para mestrado, doutorado e pós-doutorado. No total, são mais de 6.000 bolsas canceladas. Certamente, uma de minhas alunas, que acabou de ser contemplada, terá que repensar se poderá continuar o seu mestrado.


Vou “chover no molhado”, propositalmente, para registrar que não podemos aceitar os cortes realizados em relação à educação pública de qualidade, de instituições de pesquisa renomadas, da pesquisa da nação brasileira (aliás, não somente as Humanidades, mas as Ciências exatas, médicas e biológicas estão sendo afetadas – a esse respeito, ler o texto brilhante de SECCO na PUB 2019).


Não são apenas questões financeiras, mas claramente ideológicas; trata-se de decisões e ações baseadas no medo, pois, é por meio da educação e não por meio da doutrinação religiosa, que se educa para a criticidade, para a cidadania ativa e participativa, para a diversidade cultural, racial, sexual e de gêneros e, como diria Freire, para o empoderamento intelectual daqueles que são oprimidos por um sistema neoliberal secular e injusto.


Faz sentido, então, eliminar e cortar “o mal pela raiz imputado pelas humanidades”, como o que acontece com as disciplinas de filosofia e sociologia? Claro que faz total sentido para um governo que deseja impor, a todo custo, autoritarismo, militarismo, doutrinação religiosa e eliminação daquele que pensa diferente dele (parece óbvio na visão deste governo, então, eliminar as disciplinas que nos fazem pensar, criticar e produzir conhecimento, não é?).


No dia 15 de maio, pude registrar inúmeras manifestações, algumas delas extremamente críticas. Uma delas, em especial, chamou a atenção de todos: trata-se de estudantes que levantavam livros gigantes em meio à multidão. Em cada livro, títulos como:


Av. Paulista, 15 de maio de 2019, protesto contra os cortes da educação brasileira. Foto: Daniel Ferraz

Temos, assim, 1984, de George Orwell, O pequeno Príncipe, de Saint-Exupéry, Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire, Macunaíma, de Mario de Andrade, Quem tem medo do feminismo negro?, de Djamila Ribeiro, Memória del fuego, de Eduardo Galeano e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda. Enfim, “Para bom entendedor, meia palavra basta”. Porém, quero registrar que estes livros e esta experiência visual me fizeram pensar sobre o total descaso (e desejo de eliminação) que filósofos e sociólogos, em especial, vêm enfrentando em nosso país.


Novamente, é fácil explicar o porquê. É na filosofia da linguagem bakhtiniana, por exemplo, que encontramos o conceito de dialogia como algo fundamental para as práticas por meio da língua/linguagem (sim, o diálogo, ao invés da eliminação do mesmo); é por meio de Derrida que podemos desconstruir o projeto da razão e da ciência moderna (positivista, iluminista e colonialista), questionando, assim, as oposições binárias superior versus inferior, verdade versus mentira, etc.; e é por meio de Foucault que percebemos como as instituições modernas arquitetam formações discursivas que se sobrepõem por meio do poder.

É na sociologia de Bauman que reconhecemos a fluidez dos novos tempos e das relações humanas, e percebemos, com isso, que os movimentos em direção à rigidez e ao autoritarismo não cabem à vida democrática/contemporânea; é, por fim, com Sousa Santos, que questionamos as linhas abissais que separam os conhecimentos válidos (ciência moderna positivista, iluminista e colonialista, a verdade) dos não válidos (cosmologias indígenas, espiritualidade, humanidades, a não verdade).


Enfim, educação, filosofia e sociologia, “pra quê”, não é? É tudo papo de esquerdista, socialista, massa de manobra.


Se este fosse um texto publicado em blog ou post do Yahoo, eu certamente estaria sendo questionado pelos apoiadores do governo atual (na verdade, realmente não sei se este texto teria sido lido até o final por este público): “E o outro lado da moeda, hein? E os protestos a favor do governo também em maio de 2019? Não foram milhares de pessoas na Paulista e em outras capitais manifestando a favor do governo, da reforma da previdência e do tal pacote anticrime do super ministro? E aí, socialista, não vai falar disso?” (nesse momento, também teria sido xingado e ofendido, mas não vale a pena publicar aqui).


Sim, com certeza, tenho que comentar e reconhecer tais protestos e, além disso, buscar entendê-los. Isso é a própria democracia. Entretanto, por mais que tente compreender os movimentos pró-governo, não consigo concatenar as minhas ideias suficientemente para entender como poderia alguém, outro brasileiro como eu, ir contra a educação?


Como conseguem apoiar tantas ações autoritárias, baixadas por meio de decretos após decretos, medidas após medidas, em relação à educação? Como podem apoiar a exoneração de educadores que ajudaram a construir a ciência/pesquisa do país e, pior ainda, apoiar a contratação de “profissionais” que NUNCA tiveram relação ou mesmo formação para atuar na educação? Como podem ser ludibriados pelos discursos circulados nas redes sociais? Como podem?


Afinal, educação, filosofia e sociologia, “pra quê”, não é?



Referências

BAKHTIN, Mikhail . Estética da criação verbal. Tradução Paulo Bezerra. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

__________. Tempos Líquidos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.

DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. 3ª edição. São Paulo: Editora Perspectiva, 2002.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Trad. Lígia M. Ponde Vassalo. Petrópolis: Vozes, 2004.

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 28 ed. São Paulo, Paz e Terra, 1996.

SOUSA SANTOS, B. Beyond Abyssal Thinking: From Global Lines to Ecologies of knowledge. Review, v, xxx.1, Fernand Braudel Center, Binghamton University, 2007.

 

Daniel Ferraz é articulista da Revista PUB e escreve regularmente todo dia 27 de cada mês. É Pós-Doutor em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês pela USP. É docente no Programa de Pós-Graduação em Linguística da UFES e também docente no Departamento de Letras Modernas e no Programa de Pós-Graduação de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês da USP.



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1 Comment


Elizabeth Harkot De LaTaille
Elizabeth Harkot De LaTaille
Jun 30, 2019

Caro Daniel, que reflexão fortíssima, afiada e oportuna! Realmente, pensar para quê, para esses brasileiros "de bem"? O objetivo é obedecer sem questionar, trabalhar para gerar riqueza (para outrem) e odiar o diferente do padrão próprio. Se perderem tempo com educação, filosofia e sociologia, correm o risco de perderem as certezas e, com elas, a felicidade da ignorância. Muito obrigada pela leitura proporcionada!

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