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ZAPPA, GOLDEN SHOWERS, COCAÍNA, TORTURA E PERVERSÃO

-RUI VIANNA-


Foto do encarte do álbum Zoot Allures

Volto à música de Frank Zappa para esmiuçar nossa realidade institucional. E faço isso por vários motivos, mas o principal deles é a total atualidade das letras de suas músicas, em profunda ligação com os fatos distópicos da política nacional.

Acontecimento já quase paleolítico em nossa memória, a polêmica declaração do (argh!) presidente, proferida durante o carnaval deste ano, 2019 (foram tantas e tão absolutamente afrontosas e desastradas, que fica até difícil situá-las), indagando o que seria um Golden Shower , nos traz à lembrança pelo menos duas das canções do autor, que poderiam, em sua forma cínica e bem humorada, esclarecer a indigência mental de Bozo.


A primeira, mais conhecida e emblemática, é Bobby Brown goes down, ( ouça aqui) que traz um personagem de sexualidade controversa, machista e misógino, considerado por todos “o garoto mais fofo na cidade”. Bobby se dá bem em várias situações, até experimentar uma relação sexual com uma “sapatona” (termo utilizado na letra, dyke), que o deixa traumatizado. Após isso, consegue um emprego fazendo promoções no rádio, muito embora nenhum dos locutores possa sequer dizer que ele é gay (and none of the jocks could even tell I’m homo).


Descrevendo sua relação com “um amigo” ele declara que pode “permanecer por até uma hora na ‘torre do poder’, desde que eu receba um pequeno golden shower” passando também por rituais de sadomasoquismo. Não chega a ser exatamente esclarecedor, mas insinua bastante coisa. E a canção é de 1979, publicada no disco Sheik Yerbouti. Seria o malfadado Capitão Presidente capaz de captar a mensagem?

Embora não seja explícita, traz claramente a mensagem da perversão sexual que ficaria famosa nas palavras e na divulgação do vídeo feitas no referido carnaval deste ano. A canção escancara também a perversão do personagem Bobby Brown, deixando claro que fará qualquer coisa para seguir em frente, para atingir seus objetivos. Mas termina com a melancólica frase: “And my name is Bobby Brown. Watch me now, I’m going down…”


A segunda canção chama-se Sy Borg, (ouça aqui ) e merece uma introdução um pouco mais completa. Ela está presente no álbum triplo Joe’s Garage. Joe é o personagem central de uma história longa e intrincada, muito bem delineado em excelente artigo escrito por Caio de Mello Martins originalmente no site Roque Reverso (leia aqui):


Há 40 anos, Zappa escrevia "Joe's Garage", espécie de peça em três atos que descreve uma das histórias mais sórdidas, escatológicas e perversas já gravadas em vinil.


O álbum conta a saga de Joe, a perfeita representação anônima do americano médio ("Average Joe"), desde sua adolescência nos gramados suburbanos dos Estados Unidos. Assim que tem a ideia de montar sua própria banda, Joe cai em desgraça e termina preso por (em termos gerais) ser um obcecado por música em uma sociedade que despreza a cultura e (mais especificamente) por danificar patrimônio alheio depois de mijar sobre um robô erótico.”

As peripécias de Joe, que culminam, vejam só, com uma busca por auxílio religioso (mais uma nefasta coincidência com nossos tempos atuais), o levam a ter relações sexuais com um androide modelo XKJ-37, que presta todo tipo de “assistência sexual”, oferecendo sessões de sadomasoquismo, sexo oral, sexo grupal, tudo ao gosto do freguês. A experiência termina de forma totalmente desastrada com a destruição da máquina, após Joe aplicar-lhe um caprichado golden shower, o que causa um curto circuito fatal no circuito mestre. Joe, como citado no artigo acima, acaba preso por isso, por não ter dinheiro para repor a máquina destruída.


O principal fio condutor da obra ora citada é um cenário distópico, onde a música foi proibida e a cultura submetida a padrões rígidos de censura. Lembra alguma coisa? Não seria esse o projeto de lei apresentado recentemente por um deputado do PSL, Charlles Evangelista , que pretende criminalizar determinados gêneros de música? Sim, exatamente isso. (veja aqui)


Do que estamos falando? Mais uma vez, perversão, censura, intolerância. A tônica dessa distopia instalada em Brasília e pelo Brasil inteiro, através do voto e, mais ou menos, dentro das regras institucionais. A criminalização de qualquer expressão artística é de todo intolerável, ainda que não consideremos esse ou aquele estilo de nossa preferência. Cada um que decida o que ouvir, ver, ler, admirar.

E essa é a dica para mais uma canção, que descreve a influência da utilização de drogas (cocaína) na vida de determinadas pessoas. E por quê a cocaína? Devemos lembrar do episódio da droga encontrada no avião da comitiva presidencial na Espanha (muito embora a grande imprensa já não faça qualquer referência ao ocorrido), (teve até artigo meu – aqui) .


A canção é Cocaine Decisions, (ouça ) e traça um perfil ácido de quem seriam os usuários da droga, afirmando


Você é um doutor ou advogado

Tem um escritório com um salão

E as decisões de cocaína que você toma hoje

Não serão descobertas até que estejam feitas

Pelos clientes que você tem na baía


Tudo isso para dizer que, como temos visto diariamente, na declarada guerra às drogas quem está morrendo (além da verdade), são os mesmos de sempre, pobres, negros, favelados, seres periféricos que à ninguém interessam. Enquanto a droga é transportada em avião presidencial, para ser entregue e distribuída aos bacanas do andar de cima, em suas festas promovidas em salões luxuosos ornamentados por belas mulheres entre gargalhadas e traições.

A canção tem exatamente esse tom, quando diz que os consumidores finais estão acima do bem e do mal, pois sua posição os mantém fora do alcance dos longos braços da lei. Tudo muito real, tudo muito próximo da realidade que vivemos. Afinal, dia após dia temos revelações do quanto a droga e a política têm andado de mãos dadas no Brasil de hoje.


The torture never stops (1980), 2:47-3:05. Transcription: KS (update 2011, deposited at the I-depot, The Hague).

Para encerrar, uma música para que não nos esqueçamos que, quando da votação do impedimento da Presidenta Dilma, ao homenagear um torturador da tribuna da Câmara em seu voto, Bozo deveria ter saído de lá preso, algemado. Não o fizemos, e estamos pagando a conta dessa torpeza de todas as instituições. A canção é The Torture Never Stops ( ouça ) , permeada por uma atmosfera sufocante e opressiva, calcada na sonoridade lúgubre do baixo, enquanto a voz grave e arrastada de Frank Zappa descreve o interior de uma fortaleza onde os prisioneiros “resmungam e mijam suas roupas, arranhando seus cabelos desgrenhados” , enquanto seu algoz “come um porco cozido”. O lugar é tomado por moscas varejeiras e carinhosamente chamado de “calabouço do desespero” . Tortura e perversão vão sendo desfiados aos gritos de uma mulher, que atravessam toda a música em verdadeiro desespero. (Há ainda uma referência a "...the night of the iron sausage...", que eu não sei do que se trata...)


A canção é um pesadelo de aproximadamente onze minutos (na versão aqui descrita), mas é infinitamente menor do que a tortura que vem sofrendo a sociedade brasileira, em suas mais variadas formas. O pior é que poderia ter sido evitada.

 

RUI VIANNA é aposentado, torcedor do Santos FC e fanático consumidor de Frank Zappa.


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