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Roleta e licença para matar

Atualizado: 5 de dez. de 2023

- Adriano Pilatti -

A vida é mesmo uma roleta, e a morte também. Se você é branco, de classe média, filho de ex-militar e ex-parlamentar alçado aonde jamais os méritos pessoais dele permitiriam, e for colhido em flagrante de promiscuidade pessoal, laboral, funcional, política e financeira com membros de organizações criminosas crudelíssimas, então você é apenas um “garoto” a quem “estão tentando prejudicar”, mesmo que você seja um senhor de quase 38 anos, com formação superior e exercício reiterado de função pública. Mas se você é negro, pobre, padece de problemas psíquicos e tem um gesto impensado, mesmo que você seja realmente um garoto e sua mãe esteja presente, implorando ao mercenário que te capturou para que cesse a agressão a quem já está imobilizado, você será executado sumariamente por sufocamento, e seu assassino deixará a delegacia três horas depois. E se você é uma garotinha que acabou de sair da escola e foi encontrar a mãe, "mas" é negra, pobre e mora no “lugar errado”, será executada com um tiro no peito por uma polícia que atira por princípio em gente "como você".


A licença para matar com que o sinistro Moro deseja premiar assassinos habituais, desde que comandados pelo Estado, ainda nem está em discussão no Congresso e a recordista mundial na modalidade, por terrível merecimento, que é a famigerada PM fluminense, agora embalada pela retórica necrófila de seu comandante supremo, matou cerca de meia centena de jovens pobres, “quase todos pretos”, apenas nesta semana. O pacotaço proposto, que altera mais de uma dúzia de leis, é um verdadeiro plano de desoneração da matança, do encarceramento irresponsável, da arapongagem ampla, geral e irrestrita, e da deduragem - que, aliás, passa a ser financiada pelo Estado, com percentual (5% — ah, o País das Porcentagens…) sobre o valor dos recursos públicos recuperados (tal é a desorganização da legislação penal que promove em suas 34 páginas de obscurantismo, falsas soluções, inconstitucionalidades e espertezas que pretendo fazer uma análise mais abrangente da proposta em textos sucessivos, para que não fiquem muito extensos, a partir da próxima semana).


Mas, voltando à roleta, se uma galera oriunda de movimentos populares chega ao poder, faz coisas notáveis mas se acafajesta um tanto e faz algumas coisas indesculpáveis, será escorraçada, humilhada, encarcerada, privada até mesmo do exercício do luto, condenada e amaldiçoada para todo o sempre. Mas se uma escumalha de nulidades desde sempre acafajestadas se propõe a realizar ampla desoneração da predação público-privada de direitos, recursos naturais, patrimônio público, instituições e políticas de educação e bem estar, então, mesmo que essa escumalha dê demonstrações cotidianas de ignorância, incompetência, amadorismo, ausência de limites, irresponsabilidade e desvios de caráter, então os endinheirados de dentro e de fora, seus capangas públicos e privados, e os autodeclarados “cidadãos de bem” relevarão, e promoverão, e financiarão, e elegerão, e tentarão não atrapalhar a escumalha, pois o que importa é receber, e rápido, sua parte no botim. O que fazer com a escumalha depois da entrega feita é coisa que se vê depois.


A roleta é viciada - socialmente, economicamente, racialmente, a roleta é de classe. Os que mandam vão dar sustentação a toda essa pequenez, a toda essa estupidez, a toda essa falta de compostura, a toda essa sordidez até obterem as tais “reformas”. Os "sorteados" para obedecer já não encontram nas organizações e lideranças políticas “do seu campo” a capacidade de agregação e mobilização, a sintonia com a realidade e a confiabilidade necessárias para amalgamar estratégias eficazes de resistência e superação. Elas envelheceram, se apequenaram, padecem de fadiga dos materiais e anacronismo — quanto tempo ainda a fingir que não se vê? Contar apenas com o bater de cabeças e o canibalismo endógeno do lado de lá não basta. É preciso reinventar o lado de cá. Começando, talvez, por prestar menos atenção no que o lado de lá diz (“olha, ele falou nome feio!”), pois o que diz será sempre detestável, e combater mais o que ele efetivamente faz, pois o que faz não será nunca menos detestável. E será sempre mais nocivo.

 

Adriano Pilatti - Doutor em Ciência Política pelo IUPERJ, é professor adjunto do Depto de Direito da PUC-Rio, onde leciona Teoria do Estado, Direito Constitucional e Formação Constitucional do Brasil nos cursos de graduação e pós-graduação.



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