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FASCISMO COMO “INJÚRIA” E O ESPANCAMENTO NO CARREFOUR

Atualizado: 5 de dez. de 2023

-RICARDO ANTONIO LUCAS CAMARGO-



Um vocábulo muito utilizado nos últimos tempos, sem sombra de dúvida, é “fascismo”, e a precisão do respectivo significado, a identificação do contexto em que ele se aplica, sem dúvidas, têm-se revelado operações de altíssimo risco em um país que trata a cultura como luxo.


Já compareceu por várias vezes o tema a esta Revista, como se pode exemplificar por artigos de Celso Coccaro Filho (AQUI, acessado em 20 maio 2020), João Alfredo Telles Melo (AQUI, acessado em 16 ago 2019), Guilherme José Purvin de Figueiredo (AQUI, acessado em 3 dez 2020), entre outros.


Nem toda posição conservadora é fascista, vamos deixando bem claro: Benedetto Croce, pensador pouco lido no Brasil e frequentemente acusado de intelectual do fascismo, urdidor da distinção precisa entre “liberalismo” e “liberismo”, não somente assinou como redigiu o Manifesto Antifascista em resposta ao que Benito Mussolini lançara, já em 1922.


O paradoxo da identificação da configuração de injúria em tachar denominadas pessoas de “fascistas” é algo que mereceria, realmente, reflexão, sobretudo porque, normalmente, quem recebe esse epíteto não deixa de preencher muitas das características identificadas com precisão cirúrgica por Umberto Eco nas suas “14 lezioni sul fascismo”, sobre as quais travei um agradável debate com o meu saudoso amigo Alberto Vieira da Silva, encartado no livro “Racionalidade, Direito e comunicação – desafios do século XXI – diálogos”, publicado pelo editor Sérgio Antonio Fabris em 2017.


O amor pela noção de hierarquia social como algo decorrente da própria ordem natural, o enaltecimento da tradição encarnada num líder forte, cuja onipotência não pode ser questionada sob pena de traição à Pátria, o tratamento do heroísmo como um dever e não como uma atitude excepcional digna de louvor, a desconfiança de tudo o que soe a intelectualismo, a redução da pesquisa científica a uma finalidade instrumental de reforço das posições de poder, o enaltecimento de símbolos, cores, sons, como mais importantes do que os próprios dados da experiência, tanto pessoal quanto coletiva, a divisão da humanidade entre dois grandes grupos, o dos que têm direito inquestionável à existência e o dos que devem suplicar a estes permissão para existirem, e neste último, ainda, a divisão entre os que são julgados úteis aos merecedores de existir e os elementos de descarte, tudo isto não são noções que tenham sido sepultadas com o final da II Guerra, mas, pelo contrário, estão muito presentes em uma grande parte da sociedade brasileira, e compõem conceitualmente o ideário fascista em geral.


Claro que existem algumas variações, que conduziram Eco, no seu ensaio “Il fascismo eterno”, a identificar diferentes “fascismos”: Mussolini era ateu, embora tivesse restituído à Santa Sé as prerrogativas de Estado soberano, ao celebrar com Pio XI o Tratado de Latrão em 1929; Salazar fundamentava o seu regime de força na trindade Deus-Pátria-Família, embora a condição de Catedrático da Universidade de Coimbra o fizesse mitigar o componente do antiintelectualismo; Franco – o único dos governantes fascistas europeus a ter chegado ao Poder pela força, sem a consagração eleitoral – foi o último dos líderes ocidentais a se autoproclamarem, no século XX, campeão de Deus contra os Seus inimigos; Hitler pôs a ênfase no componente racial, que não se resumiu ao antissemitismo, pois englobou negros, ciganos e outras etnias que não se enquadrassem no conceito de “pureza ariana”.


Todas estas variações, entretanto, não afastam os componentes comuns do ideário fascista em geral, assim como não afastam mesmo o diagnóstico das recorrentes circunstâncias para que ele prolifere: a frustração de expectativas – as promessas não cumpridas pela democracia, em especial, e, numa dose menor, a promessa, não feita pela ciência, de infalibilidade – e o medo em face de perigos, tanto concretos quanto imaginários, do advento do “comunismo” (que raramente explicam o que entendem que seja), num certo sentido revigorando a visão da Idade Média ocidental em relação à floresta, onde, ao lado das bem reais feras como lobos e ursos, o homem comum (uso a expressão “homem comum”, mesmo, porque era um período de dominação masculina muito mais intenso do que hoje) via bruxas canibais e duendes malignos.


Quando não se tem, como argumentos para convicção, mais do que o adjetivo “comunista” e a “tese” de que “tudo o que se diga contra um comuna é verdade, sob pena de ofender a Deus”, já vemos que há confusão, na mente de quem os sustenta, entre política e torcida de futebol.


Entretanto, pessoas que esposam esses ideais se sentem, normalmente, ofendidas por serem tachadas como “fascistas”, e julgadores que deixam presente em seus pronunciamentos a rejeição a tudo o que soe como “igualitarismo”, “negação da hierarquia”, por vezes consideram injuriosa tal qualificação e dão como irrelevante a demonstração de que se trata de mero enquadramento conceitual e não de um insulto, semelhante à imputação de homossexualidade a um heterossexual, como era muito comum até há pouco tempo.


Por que se sentem tais pessoas ofendidas quando qualificadas como “fascistas”, e por que julgadores acolhem os pedidos de indenização ou de condenação criminal contra os que realizaram tal qualificação?


Não é pelo caráter antidemocrático, obscurantista, discriminatório, assassino – que, por sinal, estas pessoas costumam apontar no “comunismo” que querem exorcizar de todo modo, e que não está na doutrina em si, mas sim na prática dos regimes que se autodenominaram como tal – que se associa, corretamente, ao fascismo, mas só por uma razão: o regime que se autodenominou como tal, isto é, o “fascismo” que se reportou ao feixe de varas dos dignitários romanos e quis resgatar para a Itália as glórias dos tempos do Império, foi derrotado na II Guerra Mundial, por ter aplicado à Europa Ocidental, em parceria com a Alemanha, o tratamento que era, até então, reservado aos extraeuropeus.


Dificilmente, no Brasil, algum desses que se ofendem ao serem chamados de “fascistas” se sentiriam agredidos se, em lugar deste vocábulo, fosse empregado “salazaristas”, “franquistas” ou “integralistas”, já que nenhuma dessas denominações, embora desprovidas da abrangência que tem a palavra “fascismo”, da qual são especificações, remete à derrota pelo Ocidente na II Guerra (independentemente das disputas de narrativas que atualmente se fazem, em torno de ter sido maior ou menor o papel da URSS, diante da ruptura do Pacto Ribbentropp-Molotov, em tal derrota).

Ou seja, nenhuma dessas denominações remete à ideia de “fracasso”, que é precisamente o que, numa visão da sociedade como “naturalmente competitiva”, seria a marca da desonra, seria o atestado de que a oportunidade dada para o sujeito mostrar que sua existência se justificaria teria sido desperdiçada, e esta marca teria sido aposta a Mussolini e Hitler, que fracassaram em sua missão de erradicação do “comunismo”.

Ou, numa visão mais próxima às concepções medievais, à ideia da vitória no duelo como sinal de que Deus estava do lado do vencedor, para que o julgador não tivesse de passar pelo desconforto de estar na contingência de, à falta de provas, absolver a algum culpado, com o que a derrota do Duce e do III Reich teria sido porque Deus se teria sentido traído por ambos, em especial após a celebração do Pacto Ribbentropp-Molotov.


Volto-me, aqui, a refletir sobre um dado que mostra o quanto se está próximo do espírito do final da República de Weimar e início do III Reich, nestas terras lusófonas na América do Sul e rendeu ensejo a um belo texto de Carlos Marés, nesta revista (AQUI, acesso em 1 dez 2020): a narrativa sobre o espancamento e morte de uma pessoa, num supermercado em Porto Alegre, em razão daquilo que ERA (o velho “ah, mas alguma fez para merecer!”, que se aplica a uns com facilidade e em relação ao típico deus nórdico nem se cogita).

O negro enquanto suspeito de costume: uma noção perversa, agravada pelo culto à violência inerente ao bolsonarismo, e não fazia muito que um discurso - cujo primitivismo foi tal que me recusei a comentar - de cunho racista e ofensivo a pobres tinha sido pronunciado por um derrotado no primeiro turno das eleições municipais em Porto Alegre.

O mais grave: vigilantes privados, no sempre infamado “dois contra um”, fizeram o que nem mesmo ao Estado, que tem, desde o final da Idade Média, o monopólio do exercício da força, é permitido fazer; uma combinação de abominações, e cada uma delas, isolada, tem de ser tomada como o que realmente é, uma abominação, e não como algo justificável conforme o “freguês”.


Quando vemos pessoas que jamais seriam incomodadas pela “suspeita de estarem planejando um crime” explicarem ou, mesmo, justificarem por uma “alegada folha corrida” o espancamento de um ser humano até a morte por parte de vigilantes privados, que se supõe que não o conhecessem até aquele infeliz momento, mais se reforça minha convicção: o pensamento fascista, mesmo que se não lhe possa dizer o nome, está presente, sim, e está a pavimentar a estrada da selvageria.

E ninguém argua como contrapartida o ataque aos estabelecimentos do Carrefour: além de se tratar de patrimônio, que a empresa – que está bem longe de se poder comparar com uma vendinha de esquina (e mesmo esta não poderia arguir a sua dimensão reduzida para livrar-se de um juízo severo em função do ato de violência totalmente desnecessária contra um ser humano) - tem como repor, os que se indignaram com esse ataque estariam aplaudindo com gosto a este e outros episódios em que essa rede de supermercados mostrou que sabe “por a ralé em seu lugar”.


Quem aplaude este tipo de conduta se sentiria insultado ao ser qualificado como “fascista”? Mesmo que se pudesse excluir, como o fez o Vice-Presidente da República, o caráter racista do crime em questão – com o que não concordo, já que, como dito, não ocorreria a nenhum dos seguranças envolvidos dar este tratamento a um deus nórdico-, o caráter fascista das explicações ou justificações dessa conduta é explícito, é o naturalizar a brutalidade em nome do “por a ralé no seu lugar”.

 

Ricardo Antonio Lucas Camargo é Professor nos cursos de Graduação e Pós Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Professor Visitante da Università degli Studi di Firenze – ex-Presidente do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública – IBAP.



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